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terça-feira, 11 de setembro de 2012

Dr. Drauzio Varella escreve sobre o microbioma humano


A visão de que os germes são inimigos, num mundo cada vez mais higiênico e estéril, pertence ao passado

Em nossa cosmovisão antropocêntrica, somos o resultado dos genes que se juntaram num óvulo fertilizado. A condição humana, no entanto, é muito mais complexa.
Recebemos de nossos pais cerca de 23 mil genes, número insignificante comparado aos 3,3 milhões de genes pertencentes às bactérias alojadas em nosso corpo.
Não imagine que elas são parasitas reles à espera de uma oportunidade para invadir o organismo. Entre outras funções nobres, as bactérias liberam micronutrientes essenciais, energia para o consumo diário, regulam o sistema imunológico e nos protegem contra germes virulentos.
Na visão moderna, o corpo humano é um ecossistema no qual as células descendentes do óvulo fertilizado constituem apenas um dos componentes. O outro é o microbioma, muito mais numeroso: para cada célula herdada existem dez bactérias.
Enquanto um homem de 70 quilos é formado por 70 trilhões de células, em seu intestino existem 100 trilhões de bactérias. Os outros 600 trilhões são encontradas na pele (10 mil em cada cm²), boca, cavidade nasal, seios da face e aparelho geniturinário.
Durante a gravidez, o bebê é mantido em ambiente estéril. Se ele assim permanecesse ao vir à luz, teria poucos dias de vida, devorado por germes agressivos e incapaz de obter no seio materno a energia necessária para sobreviver.
Ao passar pelo canal do parto, o bebê se infecta com as bactérias presentes na vagina e no aparelho urinário da mãe, ricas em Lactobacillus. Nos partos cesarianos, o microbioma é adquirido principalmente pelo contato com as bactérias da pele materna das pessoas que convivem com ela. A diferença na composição dos microbiomas entre os nascidos por via vaginal ou cesariana persiste por meses e deve ter implicações na saúde dos nenês.
A transição do leite materno para a dieta sólida está associada à aquisição de um microbioma mais semelhante ao da vida adulta, mas as doenças infecciosas, o uso de antibióticos e as características da dieta podem interferir com sua composição.
Daí em diante, os germes com quem dividimos o corpo serão adquiridos por meio do contato com os familiares e com os que nos cercam, de modo que o microbioma adquirirá características únicas que nos distinguirão dos demais seres humanos, tanto quanto nossa aparência física.
Em 2006, um estudo mostrou que a mucosa intestinal de indivíduos obesos era rica em bactérias do phylum Firmicutes, enquanto as dos magros pertenciam predominantemente ao phylum Bacteroidetes. Quando os obesos perdiam peso, a composição da flora adquiria as características dos magros.
Experimentos subsequentes demonstraram que o emagrecimento está associado à ação dos Bacteroidetes na inibição da síntese de um hormônio que facilita o armazenamento de gordura. Essa mudança da flora explicaria por que doses baixas de antibióticos ajudam o gado a engordar.
Da mesma forma, seria possível combater a subnutrição por meios de manipulações da flora intestinal.
Nos últimos cinco anos, tem sido demonstrado que o microbioma exerce papel importante em doenças cardiovasculares, esclerose múltipla, diabetes, infecções por germes patogênicos, doenças inflamatórias, como a doença de Crohn, que acomete os intestinos, processos autoimunes, como a asma, e até no autismo.
O caso do diabetes é especialmente ilustrativo. Pessoas com obesidade grave e diabetes submetidas a uma cirurgia conhecida como Y de Roux, na qual o intestino sofre um curto-circuito para reduzir a capacidade de absorção de nutrientes, perdem de 20 a 30% do peso corpóreo. O mais impressionante, entretanto, é que em cerca de 80% delas o diabetes desaparece em dias.
Diversas evidências sugerem que o Y de Roux facilita o aparecimento de bactérias que liberam fatores capazes de interferir com o controle da sensibilidade à insulina, mecanismo defeituoso nos que sofrem da doença.
A visão de que os germes são inimigos a ser combatidos, num mundo cada vez mais higiênico e estéril, pertence ao passado. Precisamos deles para sobreviver tanto quanto eles dependem de nós.
No futuro, manipularemos o compartimento bacteriano de nosso ecossistema, para tratar de enfermidades de forma personalizada. Infelizmente, os iogurtes disponíveis nos supermercados estão longe de cumprir essa tarefa.

De Dr. Drauzio Varella na Folha de São Paulo de 11/09/2012

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