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sábado, 8 de outubro de 2011
Calor
A agricultura tem seus tempos certos: a semente só pode ser plantada quando a terra estiver úmida e quente o suficiente para que o milagre da germinação se realize.
Aí, a descomunal força da natureza faz com que da minúscula semente saia um conjunto de raízes que buscarão a água e os nutrientes que garantirão o crescimento da parte aérea, que, por sua vez, sobe, atravessa a camada de terra e emerge para a luz e para todos os desafios: calor, frio, seca, enchente, geada, granizo, formigas e outros insetos, fungos e outros agentes patogênicos.
E, em vencendo tudo isso, a plantinha nascida produzirá os frutos que alimentarão animais e pessoas, fazendo com que a vida prossiga e a humanidade fique em paz.
Mas, atenção, tudo tem seu tempo: o fenômeno fisiológico da germinação só acontece se as condições naturais todas se associarem a seu favor.
Não adianta, por exemplo, plantar uma semente de milho em julho: faltará água, faltará calor, e, mesmo que a planta nasça, não terá forças para crescer -e acabará perecendo. E os gastos com insumos, crédito, máquinas e serviço terão sido inúteis, e o prejuízo será certo.
É por isso que tudo tem de ser feito na hora certa, não só do lado do produtor rural , mas também do lado das políticas públicas que fomentam e apoiam a atividade produtiva, como a liberação do crédito.
Não adianta o recurso chegar depois que passar o tempo do plantio, assim como é inútil um seguro rural ser liberado depois de o problema ser identificado.
Pois bem, estamos em outubro, principal mês de plantio de grãos no Centro-Oeste, no Sul e no Sudeste brasileiro. Os agricultores já estão com as sementes compradas e guardadas, bem como os fertilizantes e os defensivos, só esperando chover de verdade. Já começaram as primeiras águas, mas ainda insuficientes.
As máquinas estão reformadas, o pessoal contratado, há uma expectativa no ar, uma ansiedade geral, todo mundo consultando as previsões oficiais de tempo, os mais velhos olhando e interpretando os sinais da natureza.
É aquela mesma apreensão de cada ano, de cada verão, de plantar de novo para, mais uma vez, preservar a vida.
Todo mundo esperando, esperando, esperando... E ele, veterano agricultor, também espera. As rugas cortam o seu rosto queimado pelo sol e, com os cabelos brancos, contam os anos passados na permanente labuta do campo. Ele também espera.
Mas ele não consegue esquecer aquele ano, lá atrás. Tinha sido muito seco, desde abril não caíra uma gota de chuva. É verdade que nesta época não é mesmo de chover, mas daquele jeito nunca vira.
Quando setembro chegara, tudo estava seco, cinzento. Nada verde, nenhuma flor colorida. Havia uma bruma espessa e cinzenta resultante de mil incêndios em toda a região. Um cheiro de morte rondava a natureza.
Mesmo assim ele estivera pronto, como sempre: os insumos comprados, as máquinas engraxadas, a turma concentrada. E esperara...
Mas setembro passara, e nada. Outubro também passara, um calor desesperador, sol causticante, 31 dias sem uma nuvem no céu. Entrara novembro, Finados passara, e nada -só o calor brutal. Chegara o feriado da Proclamação da República, e nada.
O tempo passara e ele pensando nos prejuízos: acabaria plantando tarde, o ciclo seria curto, a plantação não se desenvolveria, a produção seria baixa com custo alto. Conseguiria pagar as contas?
Dia 21 de novembro dera um chuvisqueiro; pouco, mas molhara a terra e ele mandara ver: os tratores roncaram e, por três dias de muito trabalho, plantara quase tudo. Parara, porque não chovera mais nada e a terra secara, o calor voltara infernal. E a seca seguira inclemente.
As primeiras sementes germinaram, soltaram folhinhas tímidas que esperaram mais chuva. Estiolaram, morreram, tudo acabara. Ano trágico, fizera quase tudo certo, quase quebrara, quase perdera tudo.
Agora, anos depois, estava ele de novo, esperando. Outro outubro, pensando, quem sabe, que tudo vai correr bem desta vez.
Texto de ROBERTO RODRIGUES, 69, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Depto. de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula).
Na Folha de São Paulo de 08/10/2011
domingo, 14 de agosto de 2011
O silêncio da fome na Somália
Andre Liohn/Folhapress |

Mulher segura criança com desnutrição no Hospital Benadir, em Mogadício, na Somália
Um silêncio perturbador domina o campo de refugiados de Badbaabo, o maior de Mogadício, capital da Somália. Surpreendentemente, o choro de criança é raro.
Apesar do estado agudo de desnutrição de milhares de pessoas precariamente acampadas em tendas feitas com galhos de árvores, o instinto infantil mais básico parece ter sido derrotado.
"Ela tem muita fome, mas acho que ficou fraca demais para chorar", diz Shukri Mohamed, 28, embalando seu bebê de oito meses. Pele e osso, a criança tem os olhos vidrados, indiferente ao bando de moscas que passeiam sobre seu rosto.
O silêncio dos refugiados é produto da debilidade física, mas também da impotência diante de um desastre natural agravado por duas décadas de guerra civil na Somália e pelo atraso das agências internacionais em reagir.
Vivendo a pior seca em 60 anos, a região conhecida como "Chifre da África" fez ressurgir as imagens das crianças etíopes esqueléticas que comoveram o mundo no meio da década de 80.
Mergulhada em caos e dividida entre um governo inoperante e o fanatismo da milícia islâmica Shabab, a Somália é o testemunho mais eloqüente de uma combinação mortal: tragédia climática, escalada nos preços de alimentos e conflito armado.
Grande parte do território do país é controlado pela milícia islâmica, que dificulta o deslocamento populacional e impede a chegada de assistência humanitária, alegando que as organizações ocidentais são "antiislâmicas".
Somente nos últimos três anos, foram assassinados 14 funcionários do PMA (Programa Mundial de Alimentação), principal fornecedor de ajuda alimentar na região.
Reféns da insana disputa armada que rachou o país e do temor da comunidade internacional em atuar num território sem lei, a população é presa fácil da seca.
Os rostos da fome na África, estampados em jornais do mundo inteiro, contam apenas parte da história. Em muitos casos, o fim. Iman Abdi Noono, 60, caminhou com a família durante dez dias até Mogadício para escapar da seca que aniquilou o rebanho de 30 vacas e 60 ovelhas que garantiam sua subsistência no distrito de Bu"ale (sul).
Para driblar os achaques do Shabab, que controla a região sul, a mais atingida pela seca, Iman foi obrigado a fazer uma rota alternativa. O desvio prolongou a caminhada e o sofrimento.
Agachado dentro de uma barraca no campo de refugiados, ele conta que viu seis de seus nove filhos morrer de fome no caminho.
"Carreguei o último nas costas e achei que iria salvá-lo. Mas ele morreu pouco depois de chegarmos a Mogadício", lamenta, em voz baixa.
Até algumas semanas atrás, o campo de Badbaado era apenas mais uma área em ruínas de Mogadício. Hoje abriga cerca de 30 mil refugiados internos, que se alinham em longas filas à espera de rações oferecidas por organizações humanitárias.
As tradicionais vestes islâmicas em tons fortes de amarelo, verde, vermelho e outras cores berrantes, contrastam com o semblante soturno das mulheres somalis.
De acordo com o PMA, 200 mil somalis chegaram à capital nos últimos dois meses fugindo da seca. Em sua maioria gente simples, que perdeu o pouco que tinha e ainda teve que deixar para trás parte da família.
Fatma Maha, 32, que aparenta ter pelo menos dez anos a mais, tinha chegado no mesmo dia a Mogadício. Com uma bacia de metal na mão, esperava na fila para receber um punhado de arroz que mal daria para alimentar os quatro filhos que conseguiu levar à capital.
"Deixei os dois mais velhos para trás com meu marido, porque não tive dinheiro para pagar a viagem de caminhão", diz Fatma, explicando que o motorista cobrou algo em torno de R$ 0,15 por passageiro. "Foi muito difícil, mas precisava salvar os mais novos".
Tragédia anunciada
Nas últimas três semanas, as estradas esburacadas de Mogadício passaram a ser rota do tráfego intenso de caminhões com comida e medicamentos destinados a aplacar a crise.
Embora os sinais de um desastre iminente na Somália terem começado a ser emitidos em novembro pelo sistema de alerta contra a fome do governo americano (FEWS NET), a ONU só declarou estado de emergência na região no início de julho.
A demora foi fatal para dezenas de milhares de crianças e adultos que o PMA estima terem morrido na Somália em conseqüência da seca nos últimos três meses. Segundo a agência, mais 10 mil poderão morrer no sul do país até o fim do mês.
Da Folha de São Paulo de 14/08/2011
Reportagem de Marcelo Ninio, enviado especial a Mogadício(Somália)
Leia também o artigo Fome na Somália de BAN KI-MOON
terça-feira, 14 de junho de 2011
O Código Florestal e a questão nacional
Aldo Rebelo escreve
"Se vós não fôsseis os pusilânimes, recordaríeis os grandes sonhos que fizestes por esses campos..." (Cecília Meireles, "Romanceiro da Inconfidência").
O longo e difícil debate acerca da reforma do Código Florestal Brasileiro colocou em destaque, ainda que de forma não suficientemente explícita, a velha e boa questão nacional. De um lado, a lógica dos que associam a conservação e reprodução da natureza aos interesses do Brasil funda-se na simbiose entre ambiente e desenvolvimento.
De outro, a bandeira do conservacionismo é travestida de subordinação dos interesses nacionais a um movimento que se apresenta asséptico, puro e altruísta na defesa da preservação da Terra, mas que na verdade tem na retaguarda protagonista que surgiu na humanidade desde que o homem superou a barbárie e começou a trocar mercadorias: o general comércio.
A grande disputa se dá hoje no campo no ambientalismo. Os foros internacionais, como a Organização Mundial do Comércio e seus ciclos de negociações, como a empacada Rodada Doha, são um palco por demais ostensivo para que os agentes dissimulem seus verdadeiros interesses.
As posições têm de ser claras e duras, tangenciadas unicamente pela busca das mesmas divisas monetárias que orientam as cúpulas ambientais. Nenhum país vai a essas reuniões disposto a chancelar resoluções que limitem o seu desenvolvimento.
Daí porque o interesse comercial tem de extrapolar esses foros, que são tão limitados, e tomar a forma de partidos cosmopolitas que seduzam os corações e as mentes, apresentando-se como despidos de interesses nacionais e trajando o figurino de preocupação com o futuro da humanidade.
O movimento ambientalista assim se robustece como o maior fenômeno ideológico dos nossos tempos. Seu campo fecundo é a realidade que de fato clama por um programa de uso inteligente dos recursos naturais do planeta.
Mas o pano de fundo é o interesse comercial, que, por não poder assim se expressar, assume a roupagem de uma nova utopia que engaja quem não aderiu ou mesmo quem se desiludiu com antigas propostas de efetiva transformação do mundo. Que engajamento mais nobre, universalmente humanitário, poderia pleitear além da defesa de um planeta limpo e saudável?
É evidente que, para as ONGs internacionais, pouco importa o percentual de reserva legal ou a metragem de mata ciliar, já que em nenhum país tais reivindicações constam de suas plataformas ou de suas preocupações.
O Brasil perdeu mais de 23 milhões de hectares de agricultura e pecuária, em dez anos, para unidades de conservação, terras indígenas ou expansão urbana.
Acham pouco. Querem escorraçar plantações de mais de 40 milhões de hectares e plantar mata no lugar. Quem não concorda é acusado de "anistiar" desmatadores, num processo de intimidação que acua almas pusilânimes no governo e na sociedade.Quebraram a agricultura da África e do México com subsídios bilionários. Pensam que podem fazer o mesmo por aqui. Será?
E-mail: dep.aldorebelo@camara.gov.br.
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
Agricultura: de mendicante a senhor
A AGRICULTURA (o chamado agronegócio) é um dos setores mais competitivos da economia brasileira. Foi graças ao seu superavit comercial que o Brasil livrou-se da armadilha externa em que se encontrava. Ao longo dos últimos 15 anos a política agrícola tem sofrido altos e baixos, mas a tendência tem sido de melhoria continuada. Infelizmente, a segurança jurídica do setor tem sido frequentemente ameaçada. Os problemas fundamentais da criação de um seguro de safra e de instrumentos que permitam a defesa dos preços nos mercados futuros (e, assim, dar estabilidade de "renda") têm sofrido alguns percalços.
Por outro lado, o problema da dívida, numa larga medida construído pelas "idas e vindas" do oportunismo governamental no uso político do setor, persiste e ainda não foi resolvido. O progresso da agricultura é produto de gente trabalhadora extremamente sofrida, de uma classe empresarial que acreditou no governo e viu o "ajuste" (a partir do Plano Real) fazer-se sobre o seu patrimônio. É produto também do suporte do maior instrumento de políticas públicas deste país, que é o Banco do Brasil, e dos investimentos acumulados desde o início dos anos 70 na Embrapa.
O agronegócio tem sido mais recentemente estressado: 1º) pela centralização das decisões da política ambiental; 2º) pelo estímulo que se dá às organizações não-governamentais (que recebem subsídios escondidos dos governos brasileiro e estrangeiros), que perturbam os mecanismos da própria reforma agrária; e 3º) pela construção de duvidosíssimos "índices de produtividade". Ninguém pode ser contra a política de preservar (e melhorar!) o meio ambiente, mas ninguém pode ignorar que é impossível uma política "centralizada" para um país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e dominado por vários biomas. Ninguém defende a extinção das ONGs, mas não se pode admitir que o "não-governamental" se sustente, direta ou indiretamente, de "governos" (nacional ou estrangeiros). Ninguém pode ser contra o estabelecimento de "índices mínimos de produtividade", mas não se pode ignorar a imprecisão do conceito e o risco de seu uso político.
A introdução do instituto da reeleição sem desincompatibilização, num país onde não existe controle social, está construindo um sistema onde todo o poder de eleger a Câmara e o Senado caminha para os grupos locais que controlam os prefeitos. Um dia isso será entendido. Quando isso acontecer eles não irão a Brasília como mendicantes perante o Poder Executivo. Eles irão para promover reformas constitucionais para tomar-lhe o poder...