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terça-feira, 21 de agosto de 2018

O imenso rombo potencial do Fies

O potencial de perdas de receitas com o Fies, com os financiamentos concedidos entre 2010 e 2016, é de impressionantes R$ 116 bilhões. Crédito educativo é bom, mas o programa foi mal desenhado, sua expansão teve inúmeras distorções e ele foi usado eleitoralmente em 2014 quando teve o recorde de novos contratos. Em tempos de promessas de candidatos, e de verdades contadas pela metade, é importante olhar o caso de um bom projeto que ficou insustentável pelos erros no desenho e gerenciamento.
A forte elevação do programa no governo Dilma teve relação direta com a campanha da reeleição. Os novos contratos estavam entre 30 mil ou 70 mil ao ano. Na primeira administração Dilma entraram numa escalada que levou a dar um salto de 10 vezes. Foi de 76 mil novos contratos no último ano Lula para 733 mil em 2014, ano eleitoral. Em 2015, ainda no governo da ex-presidente, caiu para 287 mil. Em 2017, o governo Temer o reformulou depois de um amplo estudo feito pelo Ministério da Fazenda que mostrou os erros.
Em 2010, foi criado o fundo garantidor e com base nisso o programa cresceu. O problema é que o fundo foi criado com a premissa errada. De que haveria uma taxa de inadimplência de 10%. No mundo inteiro é de 30%. No Brasil, se estima que os atrasos nos pagamentos dos empréstimos, entre 2010 e 2016, estejam entre 40% e 50%. Outro erro é que o calote era todo bancado pelo governo.
E, de novo, em vez de ser um programa para os pobres, incluiu não pobres e virou uma fonte garantida de receita para as universidades privadas. Os grupos maiores passaram a incentivar os alunos a procurar financiamento, porque achavam que isso reduziria o risco de não pagamento de mensalidades. Muito mais garantido era tudo ser pago por um fundo bancado pelo governo. Fizeram mais: aumentaram as mensalidades, cobrando mais dos beneficiários do programa. Virou uma bola de neve.
O número de alunos era de 200 mil entre 2002 e 2010. Pulou para quase dois milhões. Desses, 733 mil a mais só em 2014, não por acaso um ano eleitoral, em que este assunto foi objeto da campanha da reeleição. Os dados mostram que houve uma substituição de alunos pagantes por alunos financiados.
São vários os custos do Fies. Ele é 100% financiado com emissão de dívida pública. Quando o financiamento não é pago, vira despesa primária do Tesouro. E tem o custo financeiro do diferencial de juros. O orçamento do programa saiu de R$ 1,3 bilhão em 2010 para R$ 19 bilhões. O rombo potencial, se as projeções do calote se confirmarem, dá aquele valor escrito acima: R$ 116 bilhões.
O estouro do Fies aconteceu no início do segundo mandato, por isso começou a cair o número de novos financiados a partir de 2015. Em 2016, já no governo Temer, o Ministério da Fazenda fez um amplo estudo do programa. O desafio era como manter e fazê-lo sustentável. Foi criado um grupo de trabalho e durante seis meses foram chamados representantes das universidades privadas. Em seguida, ele foi alterado.
O Fundo Garantidor do Crédito Estudantil agora é bancado pelos dois lados. O governo fará um aporte único de R$ 2 bilhões, e daí para diante as universidades privadas terão que pôr dinheiro, e as que tiverem mais taxa de inadimplência farão aportes maiores. Isso as obriga a melhorar a capacidade de empregabilidade dos estudantes. Na contratação do empréstimo, a universidade tem que dizer quanto ele vai custar e qual será o indexador. Isso proíbe o aumento desordenado das mensalidades. E não poderá cobrar mais do aluno financiado que dos demais alunos. Além disso, foi colocado um teto no valor que pode ser cobrado A concessão nova caiu para 170 mil em 2017. Ainda há um passivo a ser digerido, mas o programa entrou em nova rota. A lição que fica é que a demagogia e o uso político transformam um bom programa numa bomba fiscal.
fies
Texto de Míriam Leitão n'O Globo 
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-imenso-rombo-potencial-do-fies.html

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Coalizão permitiu que Hitler subisse ao poder

Oitenta e cinco anos depois, alemães ainda buscam uma resposta sobre o que tornou possível ascensão do ditador, que nunca teve maioria dos votos 
Cena de dociumentário da cineasta alemã Leni Riefenstahl mostra multidão aclamando Hitler no Congresso de Nuremberg: políticos que negociaram a coalizão julgavam que poderiam manipulá-lo
Foto: Reprodução

Passados 85 anos, os alemães ainda buscam uma resposta sobre o que tornou possível a existência de uma ditadura como a que foi imposta por Adolf Hitler e o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla alemã). O pior capítulo da História do país começou em janeiro de 1933 com um governo de coalizão eleito democraticamente, embora sem maioria própria, por uma população cansada da falta de competência dos políticos para resolver os problemas graves do país, incluindo a crise econômica que havia transformado as ruas de Berlim em um campo de batalha diário.


— Sem o NSDAP, Hitler nunca teria conseguido se tornar o poderoso ditador capaz de iludir aliados e adversários em apenas poucos meses— diz o historiador Sven Felix Kellerhoff.

Kellerhoff, autor do livro “O NSDAP: Um partido e seus membros” (em tradução livre), foi o primeiro historiador a pesquisar o poder de sedução do partido. Com base em documentos do arquivo federal e depoimentos de membros do NSDAP, Kellerhoff traça uma imagem detalhada do partido que produziu o Führer.

Os depoimentos dos membros do partido nazista foram registrados pelo sociólogo polonês Theodore Fred Abel, que vivia nos Estados Unidos, em 1934. Durante muito tempo esquecidos, eles foram agora redescobertos, sendo que Kellerhoff foi o primeiro a analisar o material. Quase todos dizem que ingressaram no partido porque ele combatia os comunistas. Havia ainda o antissemitismo em comum e a esperança de que a situação econômica melhorasse.

Nas eleições do início de 1928, os nazistas conseguiram apenas 2,6%, um resultado que irritou o Hitler de tal forma que fez com que ele praticamente fugisse para a sua casa de férias na Baviera. Mas um ano depois, com a grave crise econômica, seis milhões de desempregados e o agravamento também da crise democrática, os alemães deixaram de acreditar na democracia da República de Weimar.

O povo ia às ruas para aplaudir as violentas SA, milícias paramilitares nazistas. O NSDAP crescia em adeptos de forma fulminante, tendo alcançado 37,4% dos votos no final de 1932.


Jovens, uniformizados e dispostos à violência sem compromisso, os membros do partido transmitiam à população a ideia do sentimento nacional do povo unido contra os judeus e os comunistas. Essa encenação da violência nas ruas alemãs fez aumentar rapidamente a popularidade do partido, que nunca conseguiu, no entanto, a maioria absoluta.

Quando o general Kurt von Hammerstein-Equord percebeu que Hitler estava a caminho do poder, em janeiro de 1933, tentou desesperadamente com o presidente Paul von Hindenburg e o então chanceler Kurt von Schleicher a convocação de uma “situação de emergência” para evitar o governo liderado pelos nazistas.

— Sete dias antes de Hitler ser indicado chanceler, Schleicher queria a dissolução do Parlamento pelo presidente e a convocação de novas eleições. A recusa do presidente acabou com as chances de execução do plano — afirma o historiador Heinrich August Winkler, autor do livro “Weimar 1918-1933”, a ser lançado em breve.

Hindenburg, por sua vez, foi influenciado pelo então ex-chanceler Franz von Papen, que preferia Hitler na posição do que o adversário Schleicher, que havia lhe sucedido no cargo. Ele planejava instrumentalizar o “soldado boêmio”, como Hitler era chamado, e voltar ao poder.

Segundo o historiador Andreas Sander, todos os políticos que tentaram combater ou manipular o ditador foram derrotados. Entre eles estavam Gregor e Otto Strasser, membros do partido nazista que defendiam uma linha mais anticapitalista, o que não era aceito por Hitler.

Os políticos que negociaram a coalizão do Führer julgavam que poderiam manipulá-lo para tornar possível a volta da monarquia, abolida em 1918. Só mais tarde, quando foi aprovada no Parlamento uma lei que dava a Hitler poderes absolutos, perceberam que tinha acontecido exatamente o contrário. O ditador tinha usado esses políticos para conseguir a sua meta.

Schleicher e Gregor Strasser foram executados na operação chamada de Noite das Longas Facas. Hoje, Kellerhof observa preocupado o crescimento do partido de extrema-direita AfD (Alternativa para a Alemanha):

— Por sorte ele não dispõe de um Hitler, nem de um Goebbels, mas há paralelos. O antissemitismo do NSDAP é hoje o ódio aos muçulmanos, por exemplo. 

Texto de Graça Magalhães - Ruether n'O Globo de 20/08/2018

https://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/coalizao-permitiu-que-hitler-subisse-ao-poder-22990578

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Vitória de brasileiro cria marco contra deportações nos EUA

Wescley Pereira ganhou direito de pedir cidadania com decisão do Supremo
O faz-tudo Wescley Pereira, 37, não está interessado em falar com a imprensa. Após cinco anos de uma batalha legal nos EUA para evitar a deportação, o mineiro que mora na ilha de Martha’s Vineyard (Massachusetts) prefere seguir a vida ao lado das duas filhas americanas e da esposa brasileira.
Mas a decisão da Suprema Corte americana envolvendo Pereira pode ter aberto o mais importante precedente em anos para que milhares de imigrantes busquem a cidadania americana, ao mesmo tempo em que ameaça mergulhar o sistema judicial americano no mais profundo caos.
Por 8 votos a 1, os juízes da máxima instância dos EUA decidiram, no final de junho, que o governo americano não pode enviar notificações para imigrantes comparecerem à audiência de deportação sem marcar dia e local para que esse encontro ocorra, como aconteceu com o brasileiro.
Entre outros efeitos, essa comunicação tinha o poder de congelar a contagem do tempo que um imigrante ilegal passava nos EUA.
Com dez anos contínuos no país, seria possível pedir o chamado cancelamento de remoção, mediante cumprimento de outras condições como pagamento de impostos, e requisitar a cidadania.
No caso de Pereira, ele estava havia seis anos nos EUA quando a notificação foi emitida sem data nem local fixados —as informações só foram enviadas quase 18 meses depois, e o caso só chegou a Justiça em março de 2013.
Por causa do procedimento falho do governo, a Suprema Corte também cancelou o congelamento do tempo corrido, o que significa que ele poderá pedir a cidadania (ele já está há 18 anos no país).
A decisão abre caminho para que milhares de imigrantes que receberam esses avisos incompletos entrem com o mesmo pedido na Justiça americana, diz o advogado David Zimmer, que representou o brasileiro.
“Você tem milhares de pessoas em situação semelhante à de Pereira e que não se qualificavam para pedir cancelamento de remoção por causa da notificação e agora poderão solicitá-la porque [com a nova decisão] o tempo não parou de correr”, afirma.
Kari Hong, professora assistente da Escola de Direito do Boston College, avalia que o caso é “um dos mais impactantes decididos em anos.”
“Ainda está sendo pouco valorizado, e pouca gente percebe o presente que foi para os imigrantes e as implicações para uma reforma do sistema de imigração. Vai afetar milhares ou dezenas de milhares de imigrantes”, estima.
O advogado Jesse Bless, do escritório especializado em imigração Jeff Goldman, diz que em torno de 200 casos dos que ele cuida podem se beneficiar da decisão. “A oportunidade é gigantesca”, afirma.
Segundo ele, mesmo deportados podem pedir revisão do processo, se a notificação tiver sido incompleta.
Hong diz que a notificação sem data e local para audiência viola “o que o Congresso e a Constituição estabelecem”. “Em vez de dizer que o imigrante tinha uma audiência, havia um intervalo que podia chegar a sete anos até que essa data fosse marcada. O governo não pode fazer isso, é o que a Suprema Corte diz agora”, afirma.
Essa prática é comum e originada numa falha de comunicação básica: os sistemas do Departamento de Segurança Doméstica, que emite as notificações, e os tribunais de imigração, que julgam os casos, não conversam.
Com isso, o departamento não tem acesso ao calendário das cortes para poder marcar dia e local das audiências.
Em sua decisão, a juíza Sonia Sotomayor afirmou que, dado o avanço tecnológico dos softwares hoje em dia, “é difícil imaginar por que o Departamento de Segurança Doméstica e os tribunais não possam trabalhar juntos para agendar audiências antes de mandar as notificações de comparecimento.”
A decisão já começa a influenciar o sistema jurídico americano. Em um caso recente no estado de Washington, um fazendeiro mexicano ameaçado de deportação por ter entrado novamente nos EUA teve o processo derrubado por causa da jurisprudência do caso envolvendo Pereira.
A possibilidade de que milhares de imigrantes recorram com base na decisão envolvendo o brasileiro também deve colocar mais pressão sobre os tribunais de imigração, que já estão no limite para julgar os muitos casos que continuam a chegar todos os dias.
“Não temos juízes suficientes para julgar os casos. Os que têm já estão sobrecarregados por processos que duram, em algumas situações, 20 anos. Não há apoio administrativo”, avalia Hong.
A decisão do Supremo é definitiva, afirma Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, centros de estudo sobre América Latina nos Estados Unidos.
“A única questão é como o caso será interpretado pelos juízes: de forma ampla, beneficiando imigrantes nas mais diversas situações, ou limitada.”
Se depender do presidente americano, Donald Trump, o cenário deve continuar conturbado. Em junho, em discurso a empresários, o republicano rejeitou contratar mais juízes e defendeu fechar a fronteira com o México para deter a imigração ilegal.
“Eles querem contratar milhares e milhares de juízes. Quem são essas pessoas?”, criticou. “Nós não queremos juízes, queremos segurança na fronteira.”
Há, segundo a maior parte das estimativas atuais, cerca de 11 milhões de imigrantes irregulares nos EUA. “Uma pessoa poderia levar 50 anos para conseguir uma audiência com a atual estrutura”, diz Hong.

VISTO DE TURISTA

Wescley Pereira entrou nos Estados Unidos em junho de 2000, aos 19 anos, com visto de turista que expirava em dezembro do mesmo ano. Desde então, estava irregular no país.
Em 2006, ele foi preso em Massachusetts por dirigir embriagado, o que desencadeou o processo de deportação. Em maio de 2006, ele recebeu uma notificação para comparecer em audiência, mas sem data nem local para acontecer.
Mais de um ano depois, em 2007, o tribunal de imigração mandou pelos Correios para Pereira uma notificação com data e local para a audiência inicial, mas a comunicação foi enviada para o endereço errado e voltou ao remetente.
Pereira não compareceu na data estabelecida e a corte ordenou a deportação à revelia. Em 2013, o brasileiro violou outra regra de trânsito e foi detido pelo Departamento de Segurança Doméstica. O tribunal de imigração decidiu, então, reabrir o processo de deportação após Pereira provar que nunca recebeu a notificação de 2007.
Com 13 anos de estada nos EUA, ele decidiu pedir o cancelamento de remoção. Alegou que a notificação de 2006 não congelava o tempo passado nos EUA por carecer de data e local de audiência. A Suprema Corte concordou.

Reportagem de Danielle Brant e Júlia Zaremba na Folha de São Paulo de 17/08/2018

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/08/vitoria-de-brasileiro-cria-marco-contra-deportacoes-nos-eua.shtml