Elas foram acusadas de matar um menino em um ritual. O caso, que teve o mais longo julgamento do País, pode sofrer uma reviravolta. ISTOÉ revela como as acusadas foram torturadas e as suspeitas de que não é da vítima o corpo encontrado
Antonio Carlos PradoAo longo de muito tempo, uma senhora que mora em Curitiba sentia uma torturante angústia nos momentos de lavar o rosto. Não conseguia molhá-lo por inteiro, muito menos enxaguá-lo. Umedecia então sob a torneira a ponta do dedo indicador da mão direita, levava-o à face, ia repetindo esse movimento e molhando a fronte ponto por ponto. Ela se chama Beatriz Abagge, tem 47 anos e é filha de Celina e Aldo Abagge, ex-prefeito da cidade de Guaratuba, no litoral paranaense. Por que Beatriz agia assim? Antes de responder a essa questão, vale registrar outro fato envolvendo ela própria e, agora, também a sua mãe.
“A janela basculante da minha cela era soldada. As guardas achavam que eu
era bruxa, me transformaria numa nuvem de fumaça e fugiria através da grade”
Beatriz Abagge, ré
VÍTIMA
O garotinho Evandro, aos 6 anos, quando foi
raptado no caminho entre a escola e a sua casa
Está marcado para a quinta-feira 28, em Curitiba, o segundo júri popular a que Beatriz Abagge será submetida – ela é acusada de, com a cumplicidade de sua mãe, ter assassinado em 1992 o garotinho Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, um alegre menino loirinho que era conhecido e amado em toda Guaratuba. Pesa ainda contra Beatriz, segundo o processo, a acusação de o “crime ter sido praticado em um satânico ritual de magia negra”: Evandro teve o peito rasgado, retiraram-lhe o coração e as vísceras, amputaram-lhe mãos e pés, escalpelaram-no e vazaram seus olhos. No primeiro júri do “caso Evandro”, realizado em 1998, mãe e filha sentaram-se no banco dos réus e foram absolvidas – é o júri mais longo da história do Brasil com 34 dias de duração. Mais demorado que o de Gregório Fortunato, segurança do ex-presidente Getúlio Vargas, acusado do assassinato do major Rubens Vaz no atentado da rua Toneleros. Mais longo que o do coronel Ubiratam Guimarães, responsabilizado pelo “Massacre do Carandiru” em São Paulo – foram 111 mortos e seu julgamento levou dez dias. Também marcou para a história o júri de Beatriz e Celina o suicídio de um dos peritos, com um tiro na cabeça sobre o túmulo de seu pai, à véspera de ele depor. O Ministério Público recorreu da sentença de absolvição da filha e da mãe, e há cerca de um mês o STF decidiu por novo julgamento. A diferença é que, dessa vez, apenas Beatriz será julgada, já que Celina está com 72 anos e pela legislação brasileira a punibilidade cessa quando completada a sétima década de vida. “Fui absolvida e serei absolvida. Eu e minha mãe fomos falsamente acusadas”, diz Beatriz, estudante de direito em Curitiba – na semana passada fez provas de direito penal (“fui muitíssimo bem”), de direito processual penal (“fui muitíssimo mal”) e de direito civil (“fui bem demais, é fácil”). “Beatriz é uma aluna exemplar, aplicada e interessada”, diz o coordenador do curso, professor Álcio Figueiredo. Tanto ele como os alunos ficaram sabendo que a Beatriz Abagge estudante é a Beatriz Abagge que foi envolvida no caso Evandro com a chegada de ISTOÉ. “A minha reação e a de todos os alunos foi a mesma: respeito”, diz Figueiredo.
“Sequestraram minha irmã pensando que ela era eu. Só descobriram o
erro quando outro acusado a chamou pelo nome de Beatriz e não de Sheila”
Sheila Abagge, psicóloga
Disputa política
Faz-se agora, aqui, uma viagem no tempo à pequena cidade litorânea de Guaratuba – 22 quilômetros de praias e um oceano de lendas e acontecimentos sombrios. Corria o ano de 1992, dia 6 de abril, e os moradores mais antigos se recordam que era “uma segunda-feira de garoa”. Caminhando sozinho pelos 100 metros que separavam – e ainda separam – a Escola Olga Silveira de sua casa, o garotinho Evandro desapareceu misteriosamente. Os seus pais, Maria e Ademir Caetano, mantinham a esperança de recuperá-lo com vida mas pressentiam o pior, até porque dois meses antes também desaparecera outro garoto, Leandro Bossi, nunca mais localizado. No sábado seguinte, 11 de abril, a polícia anunciou que o corpo de Evandro fora encontrado, sobrevoado por urubus e vilipendiado, em um matagal da cidade – próximo ao seu cadáver estava a chave de sua casa. Começou aí o martírio do luto da família. Começou paralelamente o calvário de Celina e Beatriz, respectivamente esposa e filha do prefeito Aldo Abagge, falecido em 1995 quando elas ainda estavam presas. “Sob forte escolta, porque nos julgavam perigosas assassinas, pudemos deixar a cadeia por algumas horas e visitamos o Aldo já muito doente no hospital. Falamos a ele que estávamos em liberdade para que morresse em paz”, diz Celina. A ex-primeira-dama, prima direta do cônsul da Síria no Paraná e em Santa Catarina, Abdo Dib Abage, cumpre atualmente a rotina de cuidar dos netos. Poderosa, tradicional e milionária que era, a família de origem síria e libanesa (tanto os que assinam seus nomes com dois ges quanto os que o fazem com um ge só) quebrou financeiramente e mora em uma casa cujo aluguel é pago por um genro de Celina que é desembargador. “Tudo que tínhamos foi gasto em honorários de advogados”, diz Beatriz, com a altivez dos que são acusados sem provas, empobrecem diante de tal vicissitude mas não abrem mão de seu “mais sólido patrimônio”: “A minha maior riqueza ninguém leva, a minha maior riqueza é a minha inocência e a inocência de minha mãe.”POLÍTICA
O ex-prefeito Aldo Abagge morreu em 1995
achando que a esposa e a filha estavam em liberdade
MEDO E DOR
Foto atual da sala que servia de gerência na serraria: nela,
Evandro teria sido morto em suposto ritual de magia negra
DITADURA
Casa na cidade de Guaratuba do ex-ditador do Paraguai
Alfredo Stroessner: base de sevícia da polícia
Olhando-se novamente para o campo das investigações, ao Ministério Público foi então entregue uma relação de suspeitos com nomes de pais de santo e os de Celina Abagge e de sua outra filha, a psicóloga Sheila Abagge. A família era proprietária em Guaratuba de uma tradicional serraria (50 funcionários), hoje desativada e abandonada – em seus áureos tempos fornecia madeira para a fábrica de lápis Johann Faber. No dia 2 de julho de 1992, três meses após o desaparecimento de Evandro, os policiais do grupo de elite invadiram pela manhã a residência da família que ficava em frente à prefeitura sob a acusação de que Celina e Sheila teriam sequestrado Evandro e o matado na serraria – oferecendo seu sangue, coração e vísceras a Exu, uma das entidades da umbanda, cuja imagem se localizava à esquerda da porta principal da empresa. Quanto à residência, ela já não existe, foi demolida e apenas conservaram-se, numa altura mínima, parte dos muros originais, assim como preservaram-se os umbrais. No terreno funciona o estacionamento do supermercado Brasão.
CEMITÉRIO
No túmulo (abaixo) de Evandro há fotos e brinquedos –
e muitas dúvidas se o seu corpo de fato está nele sepultado
“Eu era e sou vizinho da família do menino morto
O crime paralisou por meses toda Guaratuba”
Wilson Henttralt, garçom
A tortura será um dos pontos centrais do novo júri. Acusado por diversos órgãos de comunicação e também pelas rés de ser o comandante da sevícia, o coronel da reserva Valdir Copetti Neves rompeu o seu silêncio de 19 anos e falou com exclusividade à ISTOÉ na praça de alimentação de um shopping em Curitiba. Como quem manda um recado de que cansou de ser solitariamente o vilão da história, ele declarou: “Por que perguntar de tortura e circunstâncias de prisão somente para mim? Por que não se pergunta também ao Ministério Público e à Polícia Federal que estavam na investigação?” Nas últimas duas décadas, o coronel nunca se deixou fotografar (há apenas uma imagem antiga dele na internet). Dessa vez, ainda como quem manda um recado, até fez pose para as fotos. Há, no entanto, mais “dinamite” pronta a explodir no caso das “bruxas”. ISTOÉ teve acesso a documentos da época do desaparecimento de Evandro e a depoimentos de autoridades de Curitiba e de pessoas do povo de Guaratuba que dão conta de que o corpo que está sepultado, no terceiro túmulo para quem pisa o Cemitério Central através de sua porta principal, muito provavelmente não é o de Evandro Caetano. O Ministério Público admite que não tem fato novo para esse segundo julgamento e acabou alimentando a tese de que Evandro não está ali enterrado: em 19 anos, por 18 vezes se pronunciou contrário à exumação, atitude que não tomaria se tivesse certeza de que se trata dos restos mortais do menino.
CERTEZA
O delegado Oliveira desafia: podem
exumar o corpo, ele não é de Evandro
“Por que apenas eu? Por que não perguntam sobre as prisões e tortura
para o Ministério Público e a Polícia Federal, que também investigavam?”
Coronel Neves
O delegado que ficou contra a pena de mortepara o Ministério Público e a Polícia Federal, que também investigavam?”
Coronel Neves
Beatriz Abagge, que em breve deverá viver o derradeiro capítulo dessa história que cruzou o trágico destino de Evandro com o trágico destino de sua própria vida, foi execrada e apedrejada em praça pública, numa onda que se formou na qual as pessoas agiam dentro do conceito criado pela filósofa e cientista política Hannah Arendt em “Origens do Totalitarismo”, a partir de uma de sua reportagens para a revista americana “New Yorker”: “a solidão organizada das massas populares”. Beatriz ficou encarcerada com sua mãe por três anos e meio em Piraquara e por mais três anos em prisão domiciliar em Curitiba até o julgamento que a absolveu em 1998. Em liberdade, seu primeiro passeio com a mãe foi no Jardim Botânico, caminhada que refez com ISTOÉ. “Assim que entrei em casa, ainda em prisão domiciliar, detonei o cartão de crédito de meu irmão comprando uma porção de coisas pela televisão. Era o que eu queria fazer. Assim que conquistamos a nossa libertação, no primeiro júri, fomos passear no Jardim Botânico. Era isso também o que queríamos fazer”, diz ela. Medo de encarar novamente sete jurados? “Não tenho medo de mais nada, com certeza o pior na minha vida já veio, que foi a tortura. Nada do que virá poderá ser pior. Os tempos são outros, o estado democrático de direito está consolidado, o mundo dá voltas, as pessoas mudam.” Das voltas que o mundo dá, Beatriz é, na verdade, testemunha em carne e osso: hoje ela trabalha no próprio Poder Judiciário de Curitiba atuando no apoio e acompanhamento às medidas alternativas do Juizado Especial Criminal. Vai a Guaratuba sem medo, assim como foi no Carnaval de 1999, no ano seguinte à absolvição: aí reatou com seu namorado de antes da prisão, casou-se e com ele tem uma filha de dez anos (tem também um casal de gêmeos que adotara antes de ser presa e que já é maior de idade). Separou-se do marido, namorou um advogado 13 anos mais novo, estranhou a diferença de idade e prefere nesse momento ficar sozinha. Medo da solidão? “Não.” Medo de nada? “Olha, tenho medo de engordar. Estou com 52 quilos para uma altura de 1,55 m. Mas devoro chocolate e não vou fazer regime; chega a fome que passei na cadeia.” Quanto à outra parte da fala de Beatriz, a de que “as pessoas mudam”, aqui vão três exemplos.
O primeiro: Humberto Simões, morador de Guaratuba, é viúvo de Albertina Michelatti, que trabalhou na casa de Celina Abagge. Assim que o crime foi divulgado, Humberto e Albertina brigaram em casa e em público: ele acusava a mãe e a filha, ela as defendia. “Com o tempo fui vendo que houve muita trapalhada, mudei de opinião”, diz Humberto. O segundo exemplo trata de mudança na mão inversa: “Distanciando-me dos fatos, nesse instante eu as acho culpadas”, diz uma moradora que está há oito anos na cidade e não quis ser identificada. Finalmente, o terceiro exemplo envolve o delegado Oliveira, que era intransigente defensor da pena de morte. “Quando soube do crime pela televisão, eu gritei: pena de morte para essas duas ‘bruxas’. Pois bem, houve tanto erro da polícia nesse caso que hoje eu sou contra a pena de morte para qualquer ser humano.” Antes de partir de Guaratuba, na quarta-feira 6, justamente a data em que se completaram 19 anos do triste desaparecimento de Evandro, ISTOÉ foi à casa de sua família, a mesma em que ele morou. Seu pai, Ademir, nem chegou até o portão. O máximo que fez foi pôr o rosto na janela e, aos berros para que sua voz prevalecesse sobre os latidos do cachorro, limitou-se a dizer: “Não vou falar nada. Vai embora. Não tenho nada a dizer.”
O APOCALIPSE EM GUARATUBA
Colaborou Monique de Oliveira
Da revista Istoé
http://www.istoe.com.br/reportagens/paginar/133790_AS+BRUXAS+DE+GU
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