Quase uma década após o início da distribuição da pílula do dia seguinte no sus, o acesso ao contraceptivo de emergência é precário. Além da escassez, as unidades de saúde exigem receita para liberar a droga, que só previne a gravidez se ingerida até 72 horas após o ato sexual. Muitas vezes, porém, não há médico para fazer a prescrição e uma consulta com um ginecologista pode demorar até dois meses.
Acesso público à pílula de emergência permanece precário
Além de escassez, falta médico para assinar a receita e postos chegam a exigir presença dos pais para menor
Compra do remédio é feita sem prescrição; cartela com 2 comprimidos custa entre R$ 9 e R$ 23
Quase uma década após o início da distribuição da pílula do dia seguinte no SUS, o acesso a ela ainda é precário. Além da escassez, o principal entrave é que as unidades de saúde exigem receita para dar o contraceptivo.
Muitas vezes, porém, não há médico para assinar a prescrição no momento em que a mulher procura o posto de saúde.
Uma consulta com o ginecologista chega a demorar dois meses. A pílula só previne a gravidez se ingerida até 72 horas após o ato sexual.
Nas farmácias, as mulheres compram o remédio sem receita, por preços que variam entre R$ 9 e R$ 23 -cartela com dois comprimidos. A droga tem tarja vermelha, o que exige prescrição.
As adolescentes sofrem ainda mais dificuldade para obter a pílula. Embora diretrizes do Ministério da Saúde garantam o direito à privacidade e ao sigilo de suas informações, muitos postos exigem a presença de pais ou responsáveis para liberar o contraceptivo de emergência.
Levantamento feito em 2008 pelo Instituto da Saúde, ligado à Secretaria de Estado da Saúde, revelou que mais de 50% de 119 municípios paulistas pesquisados restringiam a oferta da pílula para adolescentes. São os últimos dados disponíveis.
"É uma hipocrisia e um total contrassenso", diz a pesquisadora Regina Figueiredo, do Instituto da Saúde.
"Se a adolescente chega grávida, aos 15 anos, ela será atendida no posto porque ganha um status social de adulta. Se chega pedindo contraceptivo, não consegue", diz.
Embora a taxa de gravidez na adolescência tenha caído na última década, 23% dos partos feitos no país ainda são de jovens entre 15 e 19 anos. Estima-se que um quarto dos abortos provocados estejam nessa faixa etária.
DESIGUALDADE
Segundo Margareth Arrilha, diretora executiva da CCR (Comissão de Cidadania e Reprodução), a exigência da receita amplia as desigualdades no acesso e no uso do contraceptivo de emergência. "Só as mulheres pobres sofrem com isso."
"Não tem sentido manter a exigência. Estamos penalizando mulheres que são as mais vulneráveis a se submeterem a um aborto inseguro", afirma o ginecologista Nilson Roberto de Melo, diretor da Febrasgo (federação das associações de ginecologia).
O aborto provocado é hoje a terceira causa de mortalidade materna no país.
Em serviços que atendem a vítimas de violência sexual, a pílula do dia seguinte é oferecida desde 1999 e já reduziu pela metade a necessidade de aborto legal. Em postos de saúde, ela só começou a ser distribuída em 2005.
O obstetra Aníbal Faúndes, pesquisador da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), garante que a pílula não traz riscos à saúde da mulher. "Qualquer entrave vai contra o efeito esperado, que é prevenir gravidez indesejada", diz ele.
Segundo especialistas, o acesso à pílula de emergência é prejudicado por problema na distribuição do medicamento e pela falta de informação de funcionários e das próprias mulheres em relação aos seus direitos.
Texto de Claúdia Collucci
Governo diz que vai facilitar acesso à pílula
Ministério da Saúde deve criar grupo para discutir assunto; entre as propostas está a liberação de receita médica
Entrega poderá ser feita por enfermeiros; para conselhos de medicina, prescrição é função exclusiva do médico
O Ministério da Saúde pretende facilitar o acesso da pílula do dia seguinte no SUS. Amanhã deverá ser publicada uma portaria criando um grupo de trabalho para discutir o assunto. Entre as propostas está a liberação da exigência da receita médica.
Os enfermeiros entregariam o contraceptivo, mediante orientação -em algumas unidades, isso já acontece. Mas há resistência dos conselhos de medicina que consideram a prescrição uma função exclusiva do médico.
"Não basta o esforço do ministério de reconhecer o problema, fazer as compras da pílula do dia seguinte e ofertar na rede pública. Ela é fundamental em casos de falhas de outros métodos anticoncepcionais", afirma o secretário de Atenção à Saúde, Helvécio Magalhães.
Segundo ele, embora o Brasil tenha uma política muito restritiva para a distribuição de medicamentos no sistema público de saúde, nas farmácias privadas a venda "é mais liberada".
Magalhães diz que, no caso da pílula do dia seguinte, é "de uma incoerência enorme" todas atitudes que estão protelando o acesso das mulheres ao contraceptivo e tornado inútil sua utilização.
"Nós vamos facilitar no que for possível a oferta para quem procurar as unidades básicas, mas, como órgão normativo, temos que atender às exigências legais."
O secretário garante que há mais falta de informação (das mulheres e dos funcionários da rede de saúde) sobre a pílula do que escassez do produto. Em quatro anos, a oferta na rede pública passou de 455 mil cartelas (com dois comprimidos) para 770 mil, aumento de 69%. Nas farmácias privadas, são vendidas mais de 5 milhões de cartelas/ano.
Magalhães afirma que o ministério vai usar a estrutura do programa "Saúde na Escola" para ampliar a divulgação dos métodos anticoncepcionais entre os adolescentes. Ele reconhece a falta de campanhas educativas maciças sobre contracepção, mas diz que elas vão acontecer em breve. "Isso não tinha entrado na agenda política, mas é fundamental para prevenir gravidez indesejada."
Texto de Cláudia Collucci
Nos EUA, não há exigência de receita médica
Estados Unidos, Canadá e vários países europeus não exigem que a mulher apresente uma receita médica para conseguir a pílula do dia seguinte.
Em alguns Estados norte-americanos, porém, o contraceptivo não está disponível nas estantes, somente atrás do balcão.
"Isso significa que a mulher tem que 'negociar' com o farmacêutico de plantão a compra", explica a antropóloga Débora Diniz, consultora da OMS (Organização Mundial da Saúde) e vice-presidente da Coalização Internacional de Saúde da Mulher.
Mas em alguns países da América Latina a situação chega a ser pior que a encontrada no Brasil.
No Chile, por exemplo, a receita não só é exigida como fica retida na farmácia-como ocorre com os psicotrópicos.
Segundo Veronica Schiappacasse, coordenadora do Consórcio Latinoamericano de Anticoncepção de Emergência, nos outros países, a lei determina exigência da apresentação da receita.
Mas, na prática, as mulheres conseguem comprar a pílula sem ela. "Exceto no Chile", reforça.
Ela afirma que embora a maioria dos países tenham normas que regulam a distribuição do contraceptivo de emergência, muitos deles não as aplicam por falta de capacitação, por objeção de consciência ou ainda por falta de insumos.
"Globalmente, temos avançado na última década. Mas de forma muito lenta", diz Veronica.
Distribuição da pílula do dia seguinte é falha na Grande SP
A distribuição da pílula do dia seguinte é falha em postos de saúde da região metropolitana de São Paulo.
Na semana passada, a reportagem da Folha visitou seis UBSs (Unidades Básicas de Saúde) no ABC e encontrou entraves na retirada dos remédios em cinco delas.
Na UBS São João, em Mauá, não havia o medicamento. Funcionários informaram que, para obter uma receita, seria necessário agendar uma consulta com o ginecologista, com data disponível somente para o mês de maio.
Consultada, a prefeitura afirmou que todas as unidades têm o contraceptivo de emergência em estoques e que irá apurar o que houve.
Em Santo André, a pílula estava disponível na UBS da Vila Humaitá, mas, no horário em que a reportagem esteve na unidade, não havia médico para prescrevê-la.
Seria necessário agendar consulta com o ginecologista (também só em maio).
A Prefeitura de Santo André informou que foi um episódio isolado, pois naquele dia o ginecologista que atende no período foi convocado para uma audiência pública.
Em São Bernardo do Campo, uma funcionária da UBS do Demarchi disse que não tinha o medicamento.
Segundo a prefeitura, todas as unidades têm o contraceptivo de emergência em estoque e, provavelmente, o remédio não foi entregue por falta de receita.
Em dois postos de São Caetano do Sul a orientação foi procurar uma unidade especializada em saúde da mulher, pois somente lá é que a pílula era distribuída.
No centro de referência, o medicamento foi obtido sem dificuldade. A prefeitura confirmou que a distribuição é feita somente naquela unidade e que, em caso de adolescentes, é necessário o consentimento assinado dos pais.
Texto de Viviane Vechi
Da Folha de São Paulo de 11/03/2012
Longe do dia seguinte
Enquanto se finge discutir a questão do aborto no país, alternativas anticoncepcionais simples, baratas e menos traumáticas são cotidianamente subutilizadas. É o caso da pílula do dia seguinte.
Foi o que mostrou reportagem desta Folha no domingo. De acordo com uma política iniciada há quase dez anos, o medicamento seria, em tese, distribuído gratuitamente à população. Na prática, as dificuldades se multiplicam e assumem aspectos quase surreais.
Como é necessário apresentar receita médica para receber o contraceptivo, as pacientes do sistema público precisam marcar consulta com um ginecologista, o qual, em certos postos de saúde, só tem horário disponível para dali a dois meses. Como o próprio nome sugere, a pílula deve ser tomada logo após o ato sexual para ter eficácia (prazo máximo de 72 horas).
Ainda mais absurda é a praxe, comum em alguns postos de atendimento, de exigir a presença de pais ou responsáveis quando a paciente é menor de idade. Evidentemente, muitas adolescentes grávidas prefeririam o sigilo.
Faltam medicamentos, como constatou a reportagem, em postos municipais da Grande São Paulo. Faltam médicos que os prescrevam. Faltam informações sobre seu uso.
O resultado, especialmente entre os pobres (a pílula pode ser adquirida sem problemas nas farmácias particulares), é o agravamento de um problema de saúde pública, hoje apontado como quinto maior fator de mortalidade materna no país: o dos abortos clandestinos.
Para o cúmulo da hipocrisia, é comum ver candidatos a cargos eletivos tentando tirar votos de adversários com a sugestão de que são "a favor do aborto" por defender medidas como a pílula do dia seguinte. A resposta dos acusados, no temor de desagradar a conservadores organizados, é em geral vaga.
Ocorre que, do ponto de vista de algumas religiões -que cumpre respeitar individualmente, mas que não deve servir de base para políticas públicas-, a pílula do dia seguinte é tão condenável quanto o aborto. Autoridades de saúde tiveram o bom-senso, contudo, de admitir esse recurso na rede oficial.
O que grupos contrários ao aborto não conseguiram impor, entretanto, conseguem os adversários habituais de um serviço de saúde de qualidade: a burocracia, a falta de recursos e a indiferença pelas necessidades da população.
Editorial da Folha de São Paulo de 13/03/2012