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sexta-feira, 17 de junho de 2011

Atravessar a rua é morte certa





Pois que, estimados leitores, ultimamente dei para fazer coisas insanas. Quero dizer, abertamente. A mais recente e mais insana delas foi a prática que resolvi iniciar nas últimas semanas, de atravessar as ruas na faixa de segurança.


Quem detesta essa coluna deve estar festejando essa notícia e os poucos tempos que terei aqui entre vocês, não é mesmo? Porque agora, é questão de tempo. É certo que um sujeito ainda mais mal humorado do que o meu novo vizinho do apartamento dos fundos vai se sentir ultrajado com a minha ousadia e atirar o seu Pajero pra cima de minha escassa pessoa. É uma certeza absoluta que alguma madama que comprou seu SVU e a rua no mesmo pagamento à vista vai acreditar que eu não passo de uma miragem, e me transformar numa.


Porque no Brasil, estimados praticamente ex-leitores, trânsito é o território livre da nossa maluquice nacional, apoiada em duas toneladas do mais puro aço fabricado na Coréia do Sul. Trânsito é o campo do idealismo das campanhas desenhadas para jamais fazerem qualquer diferença. A última grande e alvissareira transformação de que fomos capazes, foi o uso regular do cinto de segurança, o que serviu sim para aumentar a segurança no trânsito, mas de quem já está DENTRO dos veículos. Pedestre, esse abominável homem e mulher do nosso asfalto, ele que desapareça, igual ao outro abominável homem, o das neves, que nunca vimos, ou vimos em lugares que respeitam o pedestre.


Hoje mesmo, em uma faixa de segurança diante de um hospital da cidade de São Paulo, um táxi simplesmente passou por cima do meu pé, e isso não foi figurativo. Ele ainda parou um metro adiante, porque o trânsito além da faixa de segurança estava parado, e me olhou como se eu tivesse atrapalhado alguma coisa importante, tal como a liberdade dele de avançar uns desnecessários metros para poder parar sobre a faixa, exatamente como ele aprendeu lá onde vendem habilitações para monstros.


Dias atrás eu estava em Fortaleza, o último lugar do planeta onde os motoristas deveriam ser estressados e na semana passada estava na minha Porto Alegre, onde você deveria estar seguro, desde que não andando de bicicleta. Em ambas, nos extremos do país, pedestre bom é pedestre morto, de susto ou de verdade. Hoje, na animada rua do Gasômetro, aqui em SP, como poderia ser qualquer rua do Rio de Janeiro, os ônibus passavam por mim em velocidades que permitiriam a eles saírem da órbita terrestre, se tivessem oxigênio a bordo e algo, tipo um bueiro da Light, desse um empurrãozinho pra cima.


É isso? Será que um motorista brasileiro não se dá conta de que aquele pedestre ali fora poderia ser um amigo, um filho, uma mãe de alguém, e, aliás, é? Será que um motorista brasileiro abdica da maior parte da sua humanidade na hora em que senta naquele banco e enfia uma primeira?


E o pior, é que o nosso trânsito, em si, nem é dos mais horríveis do mundo. Eu já vi piores. Roma, por exemplo, é um estudo da teoria do caos aplicada a ruas milenares. Mas nenhum motorista romano avança sobre um pedestre que atravessa uma rua da forma que os antepassados curtiam ver leões avançando sobre cristãos - nunca, jamais, mesmo. Porque pedestre não está em uma armadura, para começo de conversa. Um pedestre, assim como um ciclista, conta apenas com o seu próprio corpo e o nosso respeito, se estamos em um automóvel, em relação à sua integridade. Se não a respeitamos, não respeitamos nada, e não temos o direito de estarmos do lado de dentro de uma máquina de destruição em massa, também conhecida como carro.


Eu sinceramente não compreendo como estamos tão distantes de uma atitude civilizada em relação a um dos mais importantes elementos da vida moderna. Não entendo como deixamos isso de lado, se bem que eu compreenda muito bem o que o causa. A absurda, absoluta, criminosa negligência de quem deveria cuidar da gente, aliada a nós mesmos e nossa igualmente pecaminosa atitude em relação aos nossos semelhantes em carne e osso.


E sabem que nem é tão complicado? As pessoas não são necessariamente burras ou violentas. Elas, em muitas circunstâncias, são simplesmente mal acostumadas. Elas nunca aprenderam. Elas nunca viveram em lugares onde o transito é levado a sério, ou, se foram até lá, foi apenas para fazer compras, ver algum musical na Broadway e voltar correndo para a selva. Eu sinceramente acho que basta fazermos nessa frente o que o governo de SP fez com relação ao cigarro, há apenas dois anos. Se aquela seriedade é possível, então reformarmos a relação motorista x pedestre é possível. Falta apenas a vontade, falta apenas a energia, falta apenas acabar a falta de vergonha e, pronto, estaremos lá.


Hoje, surpreendentemente, um personagem público e conhecido foi preso pelo que fez no trânsito. Não é a melhor forma de dar lições, mas não é a pior. A pior é seguir permitindo a barbárie. Eu, caros leitores, em minha nova atitude de tolerância zero para quem não me reconhece sobre a faixa, não permito. Talvez seja exatamente isso que andamos precisando fazer. Talvez seja essa a marcha que falta, a real Marcha da Liberdade em nosso país. Talvez seja, não sei. Na dúvida, marcho.


Texto de Marcelo Carneiro da Cunha, escritor e jornalista em Terra Magazine
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5190993-EI8423,00-Atravessar+a+rua+e+morte+certa.html 

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