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domingo, 14 de dezembro de 2008

O golpe militar de 1968

Ernesto Geisel governa imperialmente. Numa das mãos, a abertura política; na outra, o AI-5. A flor e o chicote, que usa bastante

"MOURÃO, SE você lesse o primeiro, cairia duro no chão, aqui. Era uma barbaridade. Fechava-se o Congresso, modificava-se o Judiciário, além de várias outras medidas de caráter nazista feroz. Recusei assiná-lo. O segundo era mais brando e, como quem toma um purgante ruim, assinei-o."
Palavras do presidente Costa e Silva sobre o sinistro ato institucional nº 5, anotadas por Olympio Mourão Filho, o açodado general mineiro que desencadeou o golpe de 1964.
Poderoso e venenoso purgante despejado goela abaixo dos brasileiros na sexta-feira 13 de dezembro de 1968.
Filho do radicalismo e da intolerância, chega com violência, censura, prisões a torto e a direito. Como a do cordial presidente JK, jogado num cubículo fétido de quartel fluminense. Ou a do demolidor político Carlos Lacerda, antigo expoente do regime, depositado num quartel carioca. Agora aliados, lutavam pela democracia.
Extraordinário 1968! Idéias e causas libertárias empolgavam boa parte do mundo. No Brasil, forte efervescência política. Crescimento das oposições, protestos, desafiadoras passeatas de estudantes, ações pontuais de guerrilha urbana, aumento da tensão, enrijecimento do regime. A linha dura militar, que controlava o poder, preparava golpe dentro do golpe.
Em 2/9/68, no apagado pinga-fogo da Câmara, o jovem deputado Marcio Moreira Alves desanca recente invasão militar na UnB. Trecho: "Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores?". O governo exige punição por ofensa às Forças Armadas. A questão vai ao STF e daí à Câmara, que, em 12/12/68, num clarão de altivez, nega licença para processá-lo.
É o pretexto. "Ou a revolução continua ou a revolução se desagrega", diz o marechal-presidente no dia seguinte, ao abrir a 43ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, que aprovou o AI-5. Do general Ernesto Geisel, muito depois: "Costa e Silva só tinha duas soluções: ou fazia o AI-5 ou renunciava".
Centralização do poder, Congresso fechado, constrangimento do Judiciário, direitos civis comuns suspensos, imprensa amordaçada, repressão impune e descontrolada, à moda "Cacete não é santo, mas faz milagre".
Cassações, prisões abusivas, tortura, seqüestros, desaparecimentos, mortes. Espaços fechados, aumentam as opções pela guerrilha. Luta fratricida, no contexto da Guerra Fria. Tancredo Neves: "O AI-5 é o instrumento mais repressivo que já existiu na civilização dos povos cultos".
Costa e Silva tenta se redimir com projeto de Constituição mais liberal e fim dos atos institucionais. Mas sofre derrame em agosto de 69 e sai de cena. Vez do terceiro golpe: o poder militar barra a posse do vice-presidente Pedro Aleixo e faz eleger o general Emílio Garrastazu Médici, entusiasta do AI-5, empossado em 30/10/69.
É o auge dos anos de chumbo e, na economia, do chamado milagre brasileiro. Ventos externos favoráveis, escalada de investimentos, expansão acelerada de renda e emprego. E o AI-5 açoitando, repressão à solta, censura implacável, intensa propaganda oficial, popularização do presidente.
Geisel assume em 15/3/74. O céu de brigadeiro tinha acabado. A primeira crise energética abatera o milagre. Dificuldades de crescimento, endividamento, inflação assanhada, fadiga do regime, conveniência de mudar.
Disciplinado, viciado em trabalho e centralizador, Geisel governa imperialmente. Mas adota lenta e cautelosa política de distensão, com avanços e recuos e progressivo envolvimento da sociedade. Numa das mãos, a abertura política; na outra, o AI-5. A flor e o chicote, que usa bastante, inclusive para fechar o Congresso e legislar sem ele. Enquadra os radicais e a própria ditadura. Coroa a liberalização do período com o fim do AI-5, jogado no lixão da história, a partir de 1979, pela emenda constitucional 11, de 13/10/ 78. "Consegui vencer todas as resistências e acabar com o AI-5, que era uma das excrescências que tínhamos."
Vigorou dez anos e 18 dias. Intimidou, feriu, atiçou a violência. Oprimiu a sociedade, puniu arbitrariamente mais de 1.600 pessoas. Cassou 113 mandatos de deputados federais e senadores, 190 de deputados estaduais, 38 de vereadores e 30 de prefeitos.
O povão era contra?
Logo depois do AI-5, Carlos Lacerda fez greve de fome na prisão. Tinha problemas de saúde, corria risco. Seu irmão foi vê-lo. Contou que a imprensa não dera nada, fazia um sol maravilhoso, as praias estavam cheias, o povo, despreocupado. Arrematou: "Carlos, você vai morrer estupidamente.
Quer fazer Shakespeare na terra de Dercy Gonçalves". Funcionou.
Em abril de 1997, ouvi do hoje presidente Lula que, se houvesse eleição presidencial direta no final de 1973, o general Médici começaria a campanha com mais de 70% dos votos. Por quê? Economia bombando, falta de consciência política.


Texto de RONALDO COSTA COUTO, 66, escritor, doutor em história pela Sorbonne, foi ministro do Interior e ministro-chefe da Casa Civil (governo Sarney). É autor, entre outras obras, de "História Indiscreta da Ditadura e da Abertura".

Da Folha de São Paulo de 14/12/08

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