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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Educação: lição incompleta


Estamos criando uma geração que não se dá conta de que precisa assumir o processo como um todo
Visitei uma amiga que estava com a neta de nove anos e que recebera da filha, mãe da menina, a incumbência de orientar a garota para que ela fizesse todas as tarefas e estudos escolares do dia seguinte durante o período em que ficaria na casa da avó. Solicitada a colaborar, sentei com a garota para ajudá-la a se organizar nos estudos.
Perguntei o que ela tinha de fazer, e a resposta foi: "Ah, não sei, está tudo na agenda. Pode ver lá". Pedi para que ela fizesse isso e soube, então, que ela nunca via a agenda, porque era a mãe que olhava e dizia a ela o que fazer.
"Para que serve sua agenda escolar?", perguntei. "Para minha mãe saber o que eu preciso fazer, para ela escrever e ler os recados da escola e para ela saber quando eu tenho provas. E para eu copiar o que a professora manda."
Muitas escolas usam a agenda com a finalidade de informar os pais sobre o andamento da vida escolar do filho, para que eles se responsabilizem por ela. O problema é que os alunos, independentemente da idade, pouco se importam com a agenda, já que logo percebem que ela é um elo de comunicação entre a escola e a sua família.
O uso –ou o não uso– da agenda pelos estudantes é apenas um exemplo de como as escolas e as famílias não têm percebido a lição que têm deixado de ensinar aos mais novos, relacionada ao entendimento do que vem a ser um processo.
Pense em uma criança ou em um adolescente que você conheça, caro leitor, em uma situação bem corriqueira: tomar banho. Você acha que eles sabem que tomar banho é um processo que tem um começo, um meio e um fim? Não! A maioria pensa que tomar banho é o ato de tomar banho. O início e o final do processo ficam com a mãe, a empregada ou outra pessoa.
Quem tem filhos ouve com frequência a frase "Mãe, me traz a toalha?", separa as roupas que o filho usará depois do banho, coloca a toalha para secar e as roupas sujas em seu devido lugar e...
Estamos criando uma geração que não se dá conta de que precisa assumir o processo como um todo, ou que toma a parte pelo todo. Volto ao exemplo da agenda, porque quase todos nós a usamos. De que adianta anotar os compromissos se não os verificamos depois? De nada, não é? Pois assim tem sido com os mais novos.
E esse estilo de tomar a parte pelo todo não está circunscrito às responsabilidades: está em tudo, inclusive no lazer e na diversão. Ir a uma festa de aniversário para eles significa apenas e exatamente ir à festa. Providenciar um presente –quando for o caso–, pagar por ele, pensar na roupa que irá ser usada, no meio de transporte, etc.? São tarefas da mãe, é claro! Mesmo aos 16, 17 anos...
Já ouvi muita reclamação de empresários, diretores e gerentes sobre como os funcionários mais jovens deixam de cumprir muitas de suas responsabilidades exatamente por isso: falta de clareza pessoal do processo ao qual seu trabalho está integrado. Em geral, eles cumprem o que acham que lhes cabe –o equivalente a tomar banho, ir à festa etc.– e dão sua tarefa por terminada.
Você percebe, leitor, a relação entre os exemplos citados e o comportamento no trabalho? Somos nós que temos ensinado isso a eles, desde muito cedo. Podemos e devemos ensiná-los de modo diferente.

Texto de Rosely Sayão na Folha de São Paulo de 18/08/2015
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/roselysayao/2015/08/1670082-licao-incompleta.shtml

domingo, 2 de agosto de 2015

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA - violência durante o parto

1 em cada 4 brasileiras diz ter sofrido abuso no parto
ÉPOCA lança campanha #partocomrespeito para levantar a discussão sobre os direitos das grávidas e suas famílias

“Você sofreu abusos”. Quando a paranaense Kelly Mafra publicou seu relato de parto em uma comunidade no Facebook para mães, em 2014, não imaginava que o primeiro comentário que receberia seria esse. A experiência na maternidade, no nascimento do primeiro filho, havia ficado muito aquém de suas expectativas mas, até aquele momento, ela não se via como vítima. Ela havia pensado na rudeza da equipe médica como um tipo de mal inevitável. Na sala de parto, não haviam permitido a entrada do marido de Kelly, apesar de o direito ser garantido em lei desde 2005. Quando as dores das contrações chegaram, ouviu: “Na hora de fazer, não gostou?” e “Não grita, vai assustar as outras mães”.

Depois que o bebê nasceu, disseram que ela levaria o “ponto do marido”, para “continuar casada”. No parto normal de Kelly, o médico fez um pequeno corte no períneo (um grupo de músculos que sustenta os órgãos pélvicos) para facilitar a saída o bebê, a episiotomia. Recomendada em alguns casos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no Brasil o procedimento é regra. Kelly não foi avisada. Na sutura, o médico deu um ponto a mais para apertar a abertura da vagina. O procedimento, sem base científica, acompanha a crença de que a vagina se alargaria após o parto, tornando o sexo insatisfatório para o homem. Kelly ainda sente dores, uma vez que a elasticidade normal do órgão foi reduzida. A história de Kelly e de outras mulheres ilustra um drama vivido por uma em cada quatro brasileiras que deram à luz, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Fiocruz: a violência obstétrica.

O termo agrupa atos de desrespeito, assédio moral e físico, abuso e negligência, e só nos últimos anos vem sendo levado a sério por pioneiros na comunidade dos profissionais de saúde, administradores hospitalares e na Justiça. “Ir para uma instituição para ter filho e ser desrespeitada é um problema de saúde”, diz a obstetra Suzanne Serruya, diretora da Organização Pan-Americana da Saúde. Em 2014, a Organização Mundial da Saúde publicou um documento condenando a violência obstétrica. Ela afirma que essas práticas foram consideradas normais até o fim do século XX. Nos anos 1990, já havia atenção ao assunto entre defensores de direitos das mulheres, mas a maior parte da comunidade médica não considerava o tema merecedor de debate. O primeiro documento científico sobre falta de respeito no parto é de 2000. “Por 30 anos, as mulheres se posicionaram dizendo ‘não queremos ser maltratadas'. Finalmente, conseguiram mover instituições a tomar um posicionamento”, afirma Suzanne. Na Venezuela e no México, a legislação vigente em ambos países inclui um tópico específico sobre violência obstétrica. No Brasil, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia a Obstetrícia publicou que é preciso humanizar o parto e que produzirá uma cartilha "de boas práticas em obstetrícia". Para Suzanne, o desrespeito para com a parturiente, sua criança e sua família ainda é uma prática comum e considerada normal em muitos hospitais e maternidades.

A convite de ÉPOCA, as personagens de uma reportagem publicada na edição que está nas bancas, a atriz Grazielli Massafera e a jornalista e apresentadora Astrid Fontenelle posaram para a campanha #partocomrespeito, que ÉPOCA lança agora nas redes sociais, não apenas para as mães nem para as mulheres. Como a reportagem mostra, o parto com respeito é um direito de todos, e importante para toda a sociedade. 

Se você também sentiu vontade de abraçar esta causa, escreva sua mensagem em uma folha, tire uma foto segurando o cartaz e, na hora de compartilhar, use a hashtag #partocomrespeito. Se você foi vítima, mande sua história, com nome completo e telefone, para epoca@edglobo.com.br. As histórias dos leitores serão publicadas no site de ÉPOCA. 

Reportagem de THAIS LAZZERI na revista ÉPOCA
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/07/violencia-obstetrica-1-em-cada-4-brasileiras-diz-ter-sofrido-abuso-no-parto.html

A GRANDE HISTÓRIA DO FALSO ESTUPRO

Empatia e compaixão podem borrar as regras jornalísticas e provocar erros de grande monta

Na quinta (30), a revista norte-americana "Rolling Stone" comunicou a saída de seu editor-executivo, Will Dana, após 19 anos na empresa. O que poderia ser só uma troca de guarda, natural de tempos em tempos em qualquer publicação, marca o desfecho de um caso que deve entrar para a história do jornalismo por duas situações exemplares: a estrepitosa divulgação de um falso estupro que pôs uma comunidade universitária sob suspeita, seguida por um processo transparente, corajoso e inédito de (re)apuração e expurgação do relatado.

O inferno da "Rolling Stone" começou em novembro, com a reportagem "Um Estupro no Campus - Um ataque brutal e uma luta por justiça na Universidade de Virgínia". A história é daquele tipo que céticos profissionais considerariam ideal demais para ser verdade. Tinha drama e "timing" nas medidas certas.

Pelo menos cinco universidades americanas registravam casos de alunas que diziam ter sido estupradas por colegas dentro dos campi, e as instituições eram acusadas de tratar as denunciantes com descrédito e de tentar abafar o escândalo.

Nesse cenário, a "Rolling Stone" tirou a sorte grande: achou uma vítima que, em busca de justiça, estava disposta a contar como havia sido estuprada por sete integrantes de uma fraternidade da escola.

A reportagem foi um sucesso instantâneo, com quase 3 milhões de visitas ao site, mais do que qualquer outra sem ser de celebridade publicada até então. Mas a festa durou pouco. Nos dias seguintes, outros veículos entraram no caso e foram levantando inconsistências variadas. Virou, diz Dana, controvérsia nacional.

Atordoada, a "Rolling Stone" decidiu pedir que uma fonte externa e acima de qualquer suspeita investigasse os lapsos de apuração, edição e checagem. Steve Coll, diretor da Escola de Jornalismo de Columbia (NY) e detentor de dois prêmios Pulitzer, topou e chamou dois colegas. O trio trabalhou de graça.

A empreitada levou quatro meses e rendeu um relatório gigantesco. É leitura obrigatória para jornalistas e aspirantes, mas pode ser interessante para qualquer leitor: é uma grande história descrita a partir da autopsia de suas entranhas. A tradução integral do texto está na página digital da ombudsman.

Steve Coll mostra que a revista descuidou de procedimentos que, vistos de fora, parecem óbvios demais para escapar a repórter e editores experientes. Minha opinião é que falhas como essas ocorrem todos os dias, com consequências menos dramáticas e ruidosas.

Ditadas pela visão mais cínica, podem ser uma omissão oportunista, para não correr o risco de espantar um personagem já circunstancialmente arredio. Numa visão mais humanista, podem ser alicerçadas na crença do jornalismo como missão que ajuda a melhorar o mundo. (Ambas não são excludentes.)

Empatia, compaixão, agenda, militância tendem a flexibilizar as regras e –especialmente quando o entrevistado encarna a condição de vítima– borrar os limites do distanciamento necessário entre profissional e personagem. Num quadro delicado como o de um estupro, parece cruel demais fazer perguntas que possam denotar suspeita ou infligir mais sofrimento e humilhação a alguém que está às voltas com o trauma. Não nego que seja, mas é parte indescartável do ofício.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ombudsman/228130-a-grande-historia-do-falso-estupro.shtml