A autêntica, pura e legítima expressão "Carnaval carioca" não tem mais sentido; o desfile das escolas de samba não é Carnaval, simplesmente
GRANDE E duradouro sucesso de público e de crítica, a expressão "Carnaval carioca" passou um período sumida, de raro em raro alguém a visitava no asilo da história. De uns tempos para cá, voltou ao cardápio dos assuntos frequentes, e é cada vez mais usada. Mas posso garantir, e o faço com palavra da moda para não deixar dúvida: a expressão que está aí é um clone. Preferiria dizer, por natural rejeição a modas, ainda mais se vocabulares, que é uma contrafação. Posso até admitir, no entanto, em benefício da compreensão, que é cópia pirata. E não paraguaia, não.
A autêntica, a pura e legítima expressão "Carnaval carioca" não tem mais sentido. Não o perdeu no de desuso, não, muito ao contrário. Ali, entre as velharias do asilo, a maioria deformada por falta de rigor histórico ou excesso de fraude interesseira, "Carnaval carioca" foi sempre o repositório zeloso de originalidades encantadoras. Guardiã de tanta criação que nasceu para ser popular e se elevou a clássico, guardiã de uma criatividade livre e libertária, espontânea e feliz.
A reanimação, recente e crescente, dos dias reservados a Carnaval tem no Rio, como centro de tudo que então se passa, o desfile das escolas de samba: "a maior festa do mundo", dizem, pelo planeta afora, um de seus slogans no comércio internacional de turismo e os meios de comunicação lá e cá. Festa de quem ou para quem? Carnaval é, por definição, festa popular, o povo em festa.
No sambódromo, pesadão, um maciço de concreto, feio e óbvio, "povo" exige nova definição. No mês passado, por mais de uma vez a imprensa do Rio noticiou a procura de negros por algumas escolas de samba para participar dos seus desfiles. Isso, na pista.
Na assistência, o preço das arquibancadas e a reserva para os pacotes turísticos sugerem onde foi parar o povo mesmo. Aliás, o afastamento intransponível do "povo" em relação ao que se passa na pista, tal como se assistisse a um balé no Municipal, e os numerosos e vastos salões chamados de camarotes já diriam o suficiente sobre a relação do sambódromo com festa popular.
O desfile das escolas de samba deve ser posto à parte do Carnaval. Não é Carnaval, simplesmente. Pode ser o mesmo em qualquer dia do ano, sem necessidade de qualquer coisa nele ou fora. Seria até mais um evento turístico. Escola, como se denominaram as agremiações de samba mais populares, não há ali. Samba, idem.
O objetivo de desfilar e seus diferentes canais de dinheiro apropriaram-se das agremiações ("escolas" porque o mero dançar ali ensinava o samba no pé, como as artes da bateria).
Repórter iniciante no "Diário Carioca", fui muito, com um colega já grande repórter, Mário Ribeiro, à Império Serrano. O belo nome desse Grêmio Recreativo Escola de Samba me fascinou, e quis conhecer sua razão de ser. Ficava em um recanto do subúrbio de Madureira, quase ao final da escadaria impiedosa que escarpava uma colina, também graciosa no nome, chamada Serrinha. Preliminares atraentes demais.
E a hospitalidade franca, a bateria diabólica, e sobretudo as músicas (muitas, grandes sucessos dez e mais anos depois, com Nara, Clara Nunes, Beth Carvalho, mais e mais) faziam o resto, naquele galpão improvisado para a alegria semanal de poucas dezenas de pessoas.
Assim e ali, fizeram-se os títulos conquistados pela Império na avenida Rio Branco e depois na Presidente Vargas, com o povaréu se somando aos figurantes vestidos de barões e marquesas que, por mais uma distração da obra divina, tivessem o samba no pé e a alma do povo. Carnaval Carioca.
Do Vassourinhas, de tempos que não conheci, ao Bafo da Onça, de meado do século passado, e ao antigo Cordão do Bola Preta, blocos incontáveis fundiram-se à história do Carnaval carioca. Tinham umas quantas centenas de componentes, às vezes uns poucos milhares.
Mas sua fama nunca intimidou ninguém. Era comum ruas, empresas, clubes terem seus próprios blocos, nos quais iam entrando e saindo aderentes eventuais. E dando sentido às ruas, em todos os bairros, a cidade toda eram um só Carnaval. Seu e à sua maneira.
As estimativas dos blocos atuais dão-lhes 300 mil integrantes, 500 mil, 1 milhão e até 2,5 milhões no Bola Preta. Quando ouço estes números, penso nos 200 mil que superlotaram o Maracanã, uma multidão tão espantosa que, mesmo tendo-a visto de dentro, dela só se pode lembrar vagamente. Pois, lê-se e ouve-se, ficou fácil haver blocos com vários Maracanãs superlotados. O Bola Preta viria, nos 2,5 milhões, com mais de 12 Maracanãs, apesar de inexistir onde os por a desfilar. Ou como desfilar.
Divida-se cada uma de tais cifras pelo número que se quiser, os meios de comunicação não se importam. Nem importa mesmo: esses blocos não são blocos cariocas. Com os seus milhões ou trilhões, as pessoas apenas se apertam e, como velhinhos de últimos cansaços, arrastam os pés. Na forma, tais blocos são uma importação mal adaptada do Carnaval de Recife. Nada a ver com o Carnaval carioca.
E agora começou no Rio o Carnaval à maneira de Salvador, em que cantores têm camarotes e palanques de onde conduzem o Carnaval, uma espécie de show aberto. Nada a ver com o Carnaval carioca.
Nesse quesito das marchas, não se pode esquecer a força do grotesco: o que seria o samba do desfile das escolas de samba é um ritmo inidentificável, horrendo, com as "celebridades" e as modelos (seja lá do que forem, mas a variedade não é grande) arrastando os pés e, diante de alguma câmera, dando uns pulinhos como se o chão estivesse pelando -é o seu samba no pé.
E aos lados da correnteza, atrás, por toda parte, uns sujeitos gritando "corre!", "acelera!", "corre mais!", "correeendo! mais depreeessa!".
Com o tempo e com outras mudanças, haveria de mudar. Mas não desse jeito. Não precisava, ao menos, deixar de ser o Carnaval carioca.
De Jânio de Freitas na Folha de São Paulo de 19/02/2012
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