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sábado, 23 de setembro de 2017

Como grandes empresas deixaram o Brasil viciado em junk food

Gritos de crianças brincando penetravam o calor úmido da manhã, enquanto uma mulher empurrava um carrinho branco por ruas esburacadas e cheias de lixo. Ela fazia entregas a algumas das famílias mais pobres de Fortaleza, levando pudim, biscoitos e outros alimentos processados aos fregueses de sua lista.

Celene da Silva, 29, faz parte do contingente de milhares de vendedores de porta em porta que trabalham para a Nestlé, ajudando o maior conglomerado mundial de alimentos processados a ampliar seu alcance e chegar a um quarto de milhão de famílias nos recantos mais distantes do Brasil.

Enquanto ela deixava pacotes de pudim Chandelle, chocolates Kit Kat e cereal infantil Mucilon nas casas de seus fregueses, uma coisa chamava a atenção neles: muitos, mesmo as crianças pequenas, estavam visivelmente acima do peso.

Celene apontou para uma casa que consta em sua lista e sacudiu a cabeça, contando que o dono do lugar, um homem morbidamente obeso, morrera na semana anterior. "Ele comeu uma fatia de bolo e morreu dormindo", ela disse.

A própria Celene pesa mais de 90 quilos e descobriu recentemente que tem pressão alta, uma condição que ela reconhece que provavelmente está ligada a seu fraco por frango frito e a Coca-Cola que ela toma com todas as refeições, incluindo o café da manhã.

O exército de profissionais de vendas diretas que a Nestlé tem no Brasil faz parte de uma transformação mais ampla do sistema alimentar, distribuindo alimentos processados e bebidas doces de estilo ocidental aos bolsões mais isolados da América Latina, África e Ásia.

Enquanto seu crescimento diminui nos países mais ricos, as multinacionais de alimentos, como Nestlé, PepsiCo e General Mills, vêm ampliando agressivamente sua presença em países em desenvolvimento, desencadeando uma máquina de vendas que subverte as dietas tradicionais em países que vão do Brasil a Gana e Índia.

Uma análise feita pelo "New York Times" de documentos das empresas, estudos epidemiológicos e relatórios governamentais –além de entrevistas com dezenas de nutricionistas e especialistas em saúde pelo mundo afora–revela uma transformação profunda no modo em que os alimentos são produzidos, distribuídos e promovidos em boa parte do mundo.

Para muitos especialistas em saúde pública, essa mudança está contribuindo para uma nova epidemia de diabetes e problemas cardíacos, doenças crônicas que são alimentadas pelos índices crescentes de obesidade em países que há uma geração apenas enfrentavam a fome e a desnutrição.

A nova realidade é epitomada por um fato único e chocante: em todo o mundo, hoje há mais obesos que pessoas abaixo do peso. Ao mesmo tempo, dizem cientistas, a disponibilidade crescente de alimentos de alto teor calórico e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de má nutrição em que cada vez mais pessoas estão ao mesmo tempo acima do peso e subnutridas.

"A história que se conta é que estamos no melhor dos mundos possíveis, com alimentos baratos e largamente disponíveis. Se você não pensar a fundo, faz sentido", disse Anthony Winson, que estuda a economia política da nutrição na Universidade de Guelph, em Ontario. Mas, segundo ele, um olhar mais próximo revela uma realidade muito diferente. "Para falar em termos simples, essa dieta nos está matando."

Mesmo os críticos dos alimentos processados reconhecem que há muitos fatores envolvidos na ascensão da obesidade, incluindo fatores genéticos, urbanização, o aumento das rendas e os modos de vida mais sedentários.

Executivos da Nestlé dizem que seus produtos ajudam a aliviar a fome e fornecem nutrientes cruciais e que a empresa já reduziu os teores de sal, açúcar e gordura de milhares de seus produtos para torná-los mais saudáveis. Mas Sean Westcott, diretor de pesquisas e desenvolvimento de alimentos da Nestlé, reconheceu que a obesidade vem sendo um efeito colateral inesperado da disponibilização mais ampla de alimentos processados de custo acessível.

"Não esperávamos que fosse esse o impacto", ele disse.

Westcott acrescentou que o problema se deve em parte à tendência natural das pessoas de comer demais assim que têm condições econômicas de comprar mais comida. A Nestlé, ele disse, procura informar os consumidores sobre os tamanhos corretos das porções e se esforça para produzir e vender alimentos que equilibram "prazer e nutrição".

Hoje existem mais de 700 milhões de obesos no mundo, 108 milhões dos quais são crianças, segundo estudo publicado recentemente no "New England Journal of Medicine". A prevalência da obesidade dobrou em 73 países desde 1980, contribuindo para 4 milhões de mortes prematuras, segundo o estudo.

É um problema de natureza tanto econômica quanto nutricional. À medida que empresas multinacionais intensificam sua presença no mundo em desenvolvimento, elas transformam a agricultura local, incentivando os agricultores a abrir mão do cultivo de variedades de subsistência em favor de commodities como cana-de-açúcar, milho e soja, os ingredientes básicos de muitos alimentos industrializados.

É esse ecossistema econômico que domina mercadinhos de bairro, grandes varejistas, produtores e distribuidores de alimentos e pequenos vendedores como Celene da Silva.

Em países tão distantes quanto China, África do Sul e Colômbia, a influência crescente das grandes empresas de alimentos também se traduz em influência política, frustrando as autoridades de saúde pública que querem cobrar impostos sobre os refrigerantes ou criar leis para frear os impactos dos alimentos processados sobre a saúde da população.

Cada vez mais nutricionistas consideram que a epidemia de obesidade está intimamente ligada às vendas de alimentos processados, que subiram 25% em todo o mundo entre 2011 e 2016, enquanto sua alta nos Estados Unidos nesse período foi de apenas 10%, segundo a firma de pesquisas de mercado Euromonitor. As vendas de refrigerantes com gás subiram ainda mais, dobrando desde 2000 na América Latina. Em 2013 venderam-se mais refrigerantes na América Latina que na América do Norte, segundo a Organização Mundial de Saúde.

As mesmas tendências são espelhadas pelo fast food, cujo consumo cresceu 30% em todo o mundo entre 2011 e 2016, enquanto o aumento nesse período foi de 21% nos Estados Unidos, segundo o Euromonitor. A rede Domino's Pizza, por exemplo, ganhou 1.281 restaurantes novos em 2016 –um "a cada sete horas", segundo seu relatório anual–, dos quais todos menos 171 fora dos Estados Unidos.

"Num momento em que o crescimento é mais moderado nas economias consolidadas, acho que uma posição forte nos mercados emergentes será uma posição vencedora", disse recentemente a investidores o executivo-chefe da Nestlé, Mark Schneider. Hoje, 42% das vendas da empresa ocorrem em mercados em desenvolvimento.

Para algumas empresas, isso pode significar focar especificamente sobre jovens, como o presidente da Coca-Cola International, Ahmet Bozer, explicou a investidores em 2014. "Metade da população mundial não tomou uma Coca nos últimos 30 dias", ele disse. "Há 600 milhões de adolescentes que não tomaram uma Coca na última semana. A oportunidade para nós é tremenda."

Defensores da indústria dizem que alimentos processados são essenciais para nutrir uma população crescente e urbanizada, com muitas pessoas com renda em alta e que exigem conveniência.

"Não vamos nos livrar de todas as fábricas e voltar a cultivar todos os grãos nós mesmos. É bobagem. Não vai funcionar", comentou Mike Gibney, professor emérito de alimentação e saúde no University College Dublin e consultor da Nestlé. "Se eu pedir a cem famílias brasileiras que parem de consumir alimentos processados, preciso perguntar também: 'O que elas vão comer? Quem as alimentará? Quanto isso vai custar?'."

O Brasil é, sob muitos aspectos, um microcosmo de como políticas governamentais e a elevação da renda estão levando pessoas a viver melhor e por mais tempo, além de, em grande medida, terem erradicado a fome.

Hoje, porém, o país enfrenta um desafio nutricional novo e grave: nos últimos dez anos o índice de obesidade no Brasil quase dobrou, chegando a 20% da população, e a porcentagem de pessoas com sobrepeso quase triplicou, chegando a 58%. A cada ano 300 mil pessoas recebem o diagnóstico de diabetes tipo 2, uma condição fortemente vinculada à obesidade.

O Brasil também exemplifica a força política da indústria de alimentos. Em 2010, uma coalizão de empresas brasileiras de alimentos e bebidas torpedeou uma série de medidas que visavam limitar os anúncios de junk food voltados às crianças. O desafio mais recente veio do presidente Michel Temer, centrista favorável às grandes empresas e cujos aliados conservadores no Congresso estão tentando limitar e reduzir o punhado de leis e regulamentos que visam incentivar a alimentação saudável.

"O que temos é uma guerra entre dois sistemas de alimentação: uma dieta tradicional de comida de verdade, produzida no passado por agricultores perto de nós, e os produtores de alimentos ultraprocessados, feitos para serem consumidos em excesso e que, em alguns casos, geram dependência", disse o professor de nutrição e saúde pública Carlos A. Monteiro, da USP.

"É uma guerra, mas um sistema de alimentação tem desproporcionalmente mais poder que o outro."

ENTREGA DE PORTA EM PORTA

Celene da Silva chega a consumidores nas favelas de Fortaleza, muitos dos quais não têm acesso fácil a um supermercado. Ela promove os produtos que vende, propagandeando as características nutricionais que constam dos rótulos e que citam vitaminas e minerais acrescentados aos itens.

"Todo o mundo aqui sabe que os produtos da Nestlé fazem bem", ela disse, apontando para latas de Mucilon, cereal para bebês cujo rótulo diz que ele é "carregado de cálcio e niacina", mas também para latas de Nescau 2.0, um achocolatado carregado de açúcar.

Celene começou a vender produtos da Nestlé dois anos atrás, quando sua família de cinco pessoas passava por dificuldades para sobreviver.

Seu marido ainda está desempregado, mas a situação deles vem melhorando. Com os cerca de R$ 580 que ela ganha por mês vendendo produtos da Nestlé, Celene conseguiu comprar uma geladeira nova, um televisor e um fogão a gás para colocar na casa da família, que tem três cômodos e fica ao lado de um alagado fétido.

O programa de vendas de porta em porta da empresa concretiza um conceito articulado pela Nestlé em seu relatório anual de 1976 para os acionistas, mencionando que "a integração com o país anfitrião é uma meta básica de nossa empresa".

Lançado no Brasil uma década atrás, o programa atende a 700 mil "consumidores de baixa renda por mês", segundo seu site na internet. Apesar da crise econômica contínua no país, o programa vem crescendo ao ritmo de 10% ao ano, segundo Felipe Barbosa, um supervisor da companhia.

Barbosa disse que a receita minguante dos brasileiros pobres e de classe trabalhadora na realidade beneficiou as vendas diretas. Isso porque, diferentemente da maioria das redes varejistas de alimentação, a Nestlé dá aos fregueses o prazo de um mês para pagar pelo que compram. Outra coisa que ajuda é que as vendedoras –o programa emprega unicamente mulheres– sabem quando seus fregueses vão receber o Bolsa Família, um subsídio mensal dado pelo governo às famílias de baixa renda.

"A essência de nosso programa é chegar aos pobres", disse Barbosa. "O que o faz funcionar é o vínculo pessoal entre a vendedora e o freguês."

Cada vez mais, também, a Nestlé se retrata como líder em matéria de compromisso com a comunidade e a saúde. Duas décadas atrás a empresa se qualificou como "companhia de nutrição, saúde e bem-estar". Ao longo dos anos ela diz que modificou a fórmula de quase 9.000 produtos para reduzir seus teores de sal, açúcar e gordura e que produziu bilhões de porções fortificadas com vitaminas e minerais. A empresa enfatiza a segurança alimentar e a redução do desperdício alimentar; ela trabalha com quase 400 mil agricultores pelo mundo afora para promover a agricultura sustentável.

Em entrevista concedida no novo campus de US$50 milhões da Nestlé em um subúrbio de Cleveland, Sean Westcott, diretor de pesquisas e desenvolvimento de alimentos, disse que o programa de vendas de porta em porta reflete outro dos slogans da empresa: "Criando valores compartilhados".

"Geramos valor compartilhado, criando microempreendedores –pessoas capazes de construir seus próprios negócios", ele explicou. Segundo Westcott, uma empresa como a Nestlé pode aumentar o bem-estar de comunidades inteiras, "transmitindo mensagens positivas sobre nutrição".

O portfólio de alimentos da Nestlé é vasto e diferente daquele de alguns fabricantes de lanches, que fazem pouco esforço para focar sua atenção sobre produtos saudáveis. Ele inclui o Nesfit, um cereal de grãos integrais; iogurtes com baixo teor de gordura, como o Molico, que contêm uma quantidade relativamente modesta de açúcar (seis gramas), e uma linha de cereais para bebê servidos com leite ou água e que são fortificados com vitaminas, ferro e probióticos.

Mike Gibney, o nutricionista e consultor da Nestlé, disse que a empresa merece crédito por ter reformulado produtos mais saudáveis.

Mas, dos 800 produtos que a Nestlé afirma que podem ser comprados através de suas vendedoras, Celene diz que suas fregueses se interessam geralmente por apenas cerca de duas dúzias, virtualmente todos produtos açucarados como chocolates Kit Kat; Nestlé Grego Frutas Vermelhas –um copo de iogurte de 100 gramas que contém 17 gramas de açúcar– e Chandelle Paçoca –um pudim com sabor de amendoim em um copinho do mesmo tamanho que o do iogurte e que contém 20 gramas de açúcar, quase o limite diário máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde.

Até recentemente, a Nestlé patrocinava um barco fluvial que entregava dezenas de milhares de caixas de leite em pó, iogurte, flan de chocolate, bolachas e doces a comunidades isoladas na bacia amazônica. Desde julho, quando o barco foi desativado, proprietários particulares de barcos passaram a suprir a demanda.

Barry Popkin, professor de nutrição na Universidade da Carolina do Norte, comentou: "Por um lado, a Nestlé é líder mundial em fórmula infantil solúvel em água e em muitos produtos lácteos. Por outro lado, ela vai até o interior profundo do Brasil vender seus doces à população."

Popkin acha o marketing de porta em porta emblemático de uma nova era insidiosa em que as empresas procuram chegar a todas as portas, em um esforço para crescer e tornar-se fundamentais para comunidades no mundo em desenvolvimento. "Elas não estão deixando um centímetro de terreno descoberto", ele comentou.

Defensores da saúde pública já criticaram a Nestlé no passado. Na década de 1970 a multinacional foi alvo de um boicote nos Estados Unidos por fazer marketing agressivo de fórmula infantil em países em desenvolvimento, algo que, segundo nutricionistas, prejudicava o aleitamento materno, a opção mais saudável.

Em 1978 o presidente da Nestlé Brasil, Oswaldo Ballarin, foi convocado para depor em audiências altamente divulgadas no Senado dos EUA sobre a questão da fórmula infantil e declarou que as críticas eram obra de atividades da igreja que visavam "prejudicar o sistema de livre empreendimento".

Nas ruas de Fortaleza, onde a Nestlé é admirada por seu pedigree suíço e a alta qualidade que se considera que seus produtos possuem, raramente se ouvem opiniões negativas sobre a empresa.

A casa de Joana d'Arc de Vasconcellos, 53, outra vendedora da Nestlé, é cheia de bichinhos de pelúcia da empresa e certificados emoldurados que ela recebeu em aulas de nutrição patrocinadas pela companhia.

O lugar de destaque na sala de sua casa é ocupado por fotos emolduradas de seus filhos aos 2 anos, cada um deles posando diante de uma pirâmide de latas vazias de fórmula infantil da Nestlé. Quando eles cresceram, ela trocou a fórmula por outros produtos Nestlé para crianças: Niko Kinder, um leite em pó para crianças pequenas; Chocapic, um cereal com sabor de chocolate, e o achocolatado Nescau.

"Quando meu filho era nenê, ele não gostava de comer –até que comecei a lhe dar alimentos da Nestlé", ela conta com orgulho.

Joana tem diabetes e hipertensão. Sua filha de 17 anos pesa mais de 117 quilos, tem hipertensão e síndrome de ovário policístico, uma desordem hormonal fortemente ligada à obesidade. Muitos outros parentes dela têm um ou mais problemas de saúde frequentemente ligados a dietas pobres: sua mãe e duas irmãs (diabetes e hipertensão) e seu marido (hipertensão). O pai de Joana morreu três anos atrás depois de perder os pés devido à gangrena, uma complicação da diabetes.

"Cada vez que vou ao centro de saúde, a fila para quem tem diabetes está saindo pela porta", ela contou. "É difícil encontrar alguém aqui que não tenha um diabético na família."

Joana tentou anteriormente vender Tupperware e produtos da Avon de porta em porta, mas muitas de suas freguesas não pagavam pelo que compravam. Seis anos atrás, depois que uma amiga lhe falou do programa de vendas diretas da Nestlé, Joana agarrou a oportunidade.

Ela diz que os fregueses nunca deixaram de lhe pagar.

"As pessoas precisam comer", explicou.

A INDÚSTRIA SE IMPÕE

Em maio de 2000, Denise Coutinho, então diretora de nutrição do Ministério da Saúde, estava numa festa de Dia das Mães na escola de seus filhos quando seu celular tocou. Era o chefe de relações governamentais da Nestlé. "Ele estava chateadíssimo", ela se recorda.

O motivo de preocupação da Nestlé era uma nova política que o Brasil havia adotado e estava tentando levar à Organização Mundial de Saúde. A recomendação, se a medida tivesse sido adotada, teria sido que crianças em todo o mundo devem ser amamentadas por seis meses, em lugar da recomendação anterior de entre quatro e seis meses.

"Dois meses a mais pode não parecer grande coisa, mas é muito dinheiro envolvido. São muitas vendas", disse Coutinho, que deixou seu cargo em 2004 e hoje é consultora independente de nutrição junto à ONU, entre outros organismos.

Ela disse que, no final, as companhias de fórmula infantil conseguiram paralisar a nova política por um ano. Perguntada sobre o que Coutinho relatou, a Nestlé disse que "acredita que o leite materno é a nutrição ideal para os bebês" e que apoia e promove as diretrizes da OMS.

Seria difícil exagerar o poder econômico e o acesso político de que desfrutam os conglomerados de alimentos e bebidas no Brasil, que empregam 1,6 milhão de pessoas e são responsáveis por 10% do produto econômico nacional.

Em 2014, empresas de alimentos doaram US$158 milhões a parlamentares brasileiros, um valor três vezes superior ao doado em 2010, segundo a Transparência Internacional Brasil. Um estudo divulgado pela organização no ano passado concluiu que mais de metade dos atuais deputados federais brasileiros foram eleitos com doações da indústria de alimentos –antes de o Supremo Tribunal proibir as contribuições corporativas, em 2015.

O maior doador isolado aos candidatos congressionais foi o grande frigorífico brasileiro JBS, que deu US$112 milhões a candidatos em 2014. A Coca-Cola doou US$6,5 milhões em contribuições de campanha naquele ano, e o McDonald's, US$561 mil.

Assim, estava preparado o palco para uma batalha política monumental quando, em 2006, o governo quis promulgar regulamentos à indústria alimentícia visando reduzir a obesidade e doenças. As medidas, que surgiram em decorrência da política anterior em relação ao aleitamento, incluíam alertas publicitários para avisar aos consumidores sobre alimentos com altos teores de açúcar, sal e gorduras saturadas, além de restrições de marketing visando reduzir a atratividade de alimentos altamente processados e bebidas açucaradas, especialmente as voltadas às crianças.

Seguindo o exemplo dos esforços bem-sucedidos do governo para limitar a propaganda de cigarros, as novas regras teriam impedido marcas como Pepsi e KFC de patrocinar eventos esportivos e culturais.

"Achamos que o Brasil poderia ser um exemplo para o resto do mundo, um país que põe o bem-estar de seus cidadãos acima de tudo", falou Dirceu Raposo de Mello, então diretor da Anvisa. "Infelizmente, a indústria alimentícia não tinha a mesma posição."

As empresas de alimentos assumiram perfil discreto, unindo-se por trás da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), um grupo de lobby cujo conselho de vice-presidentes incluía executivos da Nestlé, da Cargill, gigante americana de carnes processadas, e da Unilever, o conglomerado alimentício europeu responsável por marcas como Hellmann's, óleo Mazola e Ben & Jerry's. A Abia se negou a dar declarações para este artigo.

Nos primeiros dias das audiências públicas, a indústria parecia estar negociando as normas de boa fé, mas ativistas de saúde dizem que, nos bastidores, advogados e lobistas das empresas travavam uma campanha em várias frentes para fazer o processo todo descarrilar.

Acadêmicos financiados pela indústria começaram a aparecer na televisão para atacar os regulamentos propostos, tachando-os de economicamente destrutivos. Outros especialistas escreveram editoriais em jornais sugerindo que a prática de exercícios físicos e a atenção maior dos pais poderiam ser mais eficazes que regulamentos no combate à obesidade infantil.

Analistas dizem que a palavra de ordem mais poderosa da indústria foi sua denúncia das restrições propostas à publicidade de produtos alimentícios, que ela qualificou de censura. A acusação ganhou ressonância especial em vista das quase duas décadas de ditadura militar que haviam terminado em 1985.

Segundo Vanessa Schottz, uma ativista nutricional, em uma reunião, um representante da indústria de alimentos acusou a Anvisa de tentar subverter a autoridade parental, dizendo que as mães têm o direito de decidir o que dão de comer a seus filhos. Em outra reunião, ela recordou, um representante da indústria de brinquedos se levantou e atacou as regras de marketing propostas, dizendo que elas privariam as crianças brasileiras dos brinquedos que às vezes acompanham as refeições de fast food. "Falou que estávamos matando o sonho das crianças", Scottz recordou. "Ficamos estarrecidos."

No final de 2010, acuada pelas críticas da indústria, a Anvisa revogou a maioria das restrições propostas. O que restou foi uma única proposta exigindo que os comerciais incluíssem um aviso sobre alimentos e bebidas pouco saudáveis.

Então começaram os processos judiciais.

Ao longo de vários meses, um grupo díspar de entidades representativas da indústria moveu 11 processos judiciais contra a Anvisa. Entre os querelantes estavam a associação nacional de produtores de biscoitos, o lobby dos produtores de milho e uma aliança de companhias de chocolate, chocolate em pó e doces. Algumas das ações alegavam que os regulamentos violavam a proteção constitucional da liberdade de expressão; outros diziam que a Anvisa não tinha o direito de regular as indústrias alimentícia e publicitária.

Embora defensores da saúde pública digam que as ações judiciais não foram inteiramente inesperadas, eles foram pegos de surpresa pela reação do advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, nomeado para o cargo pelo presidente.

Pouco depois de as regras propostas terem sido publicadas oficialmente, em junho de 2010, Adams tomou o partido da indústria. Algumas semanas mais tarde um tribunal federal suspendeu os regulamentos, citando o parecer escrito de Adams, que sugeriu que a Anvisa não tinha a autoridade para regular as indústrias alimentícia e publicitária. Adams se negou a dar declarações para este artigo.

Dirceu Raposo de Mello, o ex-presidente da Anvisa, diz que ficou atônito com a mudança de postura de Adams, em vista do apoio de longa data da Advocacia Geral da União à Anvisa. Sete anos mais tarde, com a maioria dos 11 processos ainda em aberto, os regulamentos permanecem congelados.

"A indústria deu a volta no sistema", disse Raposo de Mello.

Enquanto isso, a indústria de alimentos e bebidas ficava mais agressiva em seu esforço para neutralizar a Anvisa, que via como sua maior adversária.

Em 2010, no meio da batalha contra os regulamentos propostos pela agência, um grupo de 156 executivos da indústria levou suas queixas à campanha de Dilma Rousseff, que concorria à Presidência.

Marcello Fragano Baird, cientista político em São Paulo que estudou a campanha do lobby alimentício contra os regulamentos nutricionais, disse que Dilma prometeu aos executivos que interviria junto à Anvisa. "Ela prometeu que depois de eleita 'faria uma faxina na casa'", ele disse, acrescentando que soube do encontro por meio de entrevistas com participantes.

Dilma venceu a eleição e, pouco depois de tomar posse, substituiu Raposo de Mello por Jaime César de Moura Oliveira, aliado político de longa data e ex-advogado da subsidiária brasileira da Unilever.

Um porta-voz de Dilma se negou a disponibilizá-la para uma entrevista.

Em 2012 a Anvisa abrigou uma exposição itinerante de combate à obesidade em sua sede. Intitulada "Emagrece, Brasil", a exposição propôs o exercício físico e a moderação como as chaves para o combate à obesidade, mas ignorou em grande medida as evidências científicas dominantes sobre o perigo do consumo excessivo de açúcar, refrigerantes e alimentos processados.

O patrocinador da exposição? A Coca-Cola.

ALIMENTOS IRRESISTÍVEIS, DIETAS GORDUROSAS

Mais de 1.600 quilômetros ao sul de Fortaleza, os efeitos das mudanças nos hábitos alimentares são evidentes numa colorida sala de aula de uma creche de São Paulo, a maior cidade brasileira. Mais de cem crianças lotam as salas todos os dias, cantando o alfabeto, brincando e tirando sonecas em grupo.

Quando foi criada, no início dos anos 1990, a missão da creche dirigida por uma ONG brasileira era simples: aliviar a subnutrição de crianças dos bairros mais pobres da cidade, que não recebiam comida suficiente.

Hoje em dia muitas das crianças que frequentam a creche são gordinhas, e as nutricionistas da instituição observam que algumas são preocupantemente baixas para sua idade, em consequência de dietas com alto teor de sal, gordura e açúcar, mas carentes dos nutrientes necessários para o desenvolvimento saudável.

Administrado pelo Centro de Recuperação e Educação Nutricional, o programa inclui crianças pré-diabéticas de 10 anos de idade com esteatose hepática perigosa, adolescentes com hipertensão e crianças pequenas tão malnutridas que têm dificuldade em andar.

"Estamos recebendo até mesmo bebês, algo que nunca antes vimos", falou Giuliano Giovanetti, que cuida das comunicações da entidade. "É uma crise para nossa sociedade. Estamos criando uma geração de crianças com deficiências cognitivas e que não vão alcançar seu potencial pleno."

Quase 9% das crianças brasileiras eram obesas em 2015, um aumento de mais de 270% desde 1980, segundo estudo recente do Instituto de Métricas e Avaliação da Universidade de Washington. Isso coloca o país a pouca distância dos Estados Unidos, onde 12,7% das crianças eram obesas em 2015.

Os números são ainda mais alarmantes nas comunidades atendidas pelo centro: em alguns bairros, 30% das crianças são obesas e outras 30% malnutridas, segundo dados da própria organização, que constatou que 6% das crianças obesas também estão malnutridas.

Os índices crescentes de obesidade estão ligados principalmente a melhoras econômicas, na medida em que as famílias com renda aumentada aderem à conveniência, ao status e aos sabores oferecidos pelos alimentos processados.

Pais e mães ocupados alimentam seus filhos pequenos com macarrão instantâneo e nuggets de frango congelados, frequentemente acompanhados de refrigerante. Estudos revelam que o arroz, feijão, salada e carnes
grelhadas, a base da dieta brasileira tradicional, estão sendo abandonados.

O problema é agravado pela violência galopante nas ruas, que mantém as crianças pequenas presas dentro de casa.

"É perigoso demais deixar meus filhos brincarem na rua. Por isso eles passam todo o tempo livre sentados no sofá, jogando videogames e assistindo à TV", falou Elaine Pereira dos Santos, 35, mãe de dois filhos de 9 e 4 anos, ambos acima do peso.

Isaac, 9, pesa 62 quilos e só pode usar roupas de adolescentes. Elaine, que trabalha na farmácia de um hospital, encurta as calças para ele.

Como muitas mães brasileiras, ela ficou contente quando Isaac começou a ganhar peso, quando era pequeno, pouco depois de ter provado sua primeira batata frita do McDonald's. "Sempre achei que bebê gordinho é melhor", ela disse. Elaine ficava feliz em satisfazer os hábitos alimentares de Isaac, incluindo saídas frequentes para restaurantes de fast food e quase nenhuma fruta ou verdura.

Mas, quando Isaac começou a ter dificuldade em correr e a queixar-se de dores nos joelhos, Elaine percebeu que algo estava errado. "O mais difícil é a gozação das outras crianças", ela disse. "Quando saímos para fazer compras, até os adultos apontam e olham para ele" ou o chamam de gordinho.

Na creche em São Paulo, enfermeiras acompanham o desenvolvimento físico e cognitivo das crianças, enquanto nutricionistas ensinam os pais a preparar refeições saudáveis e de baixo custo. Para algumas crianças, a cozinha experimental do centro oferece sua primeira introdução a repolhos, ameixas e mangas.

Um dos desafios fundamentais é convencer os pais de que seus filhos estão doentes. "Diferentemente do câncer ou outras doenças, essa é uma deficiência que não é visível", explicou Juliana Dellare Calia, 42, nutricionista da organização.

Embora membros da equipe digam que o programa conquistou avanços significativos em termos de mudar o modo como as famílias se alimentam, muitas crianças terão que lutar contra a obesidade pela vida inteira. Isso acontece porque, segundo sugere um conjunto crescente de pesquisas, a má nutrição infantil pode provocar modificações metabólicas permanentes, reprogramando o corpo para que ele converta calorias excedentes em gordura corporal mais facilmente.

"É a resposta do corpo ao que ele entende como fome", disse Dellare Calia.

O DINHEIRO FALA MAIS ALTO

Ao mesmo tempo em que especialistas em nutrição lamentam a crise crescente de obesidade –e os potenciais custos médicos de longo prazo–, um aspecto da revolução dos alimentos processados no Brasil é inegável: a expansão da indústria produz benefícios econômicos para pessoas de vários níveis sociais.

A Nestlé, que afirma empregar 21 mil pessoas no Brasil, lançou há dois anos um programa de aprendizado que já ofereceu treinamento profissional a 7.000 pessoas com menos de 30 anos.

Perto da base da "cadeia alimentar" está Celene da Silva, a vendedora de Fortaleza, que vê o futuro com otimismo, não obstante seus problemas crescentes de saúde. Sua vida tem sido uma luta desde que ela abandonou a escola, aos 14 anos, quando engravidou de seu primeiro filho. Hoje ela fala em arrumar os dentes que faltam e prejudicam seu sorriso hesitante e em comprar uma casa decente, que não tenha goteiras quando chove forte.

Ela agradece à Nestlé.

"Pela primeira vez na minha vida sinto esperança e tenho independência", ela disse.

Celene tem consciência da ligação entre sua dieta e seus problemas persistentes de saúde, mas insiste que seus filhos estão bem nutridos, apontando para os produtos da Nestlé em sua sala. Ser vendedora da Nestlé tem outra vantagem: os biscoitos, chocolates e pudins que frequentemente alimentam sua família são comprados ao atacado.

Com uma lista crescente de fregueses, Celene agora visa um novo objetivo, um que, afirma, vai aumentar seu negócio ainda mais.

"Quero comprar uma geladeira maior."

Resumo
US$158 milhões foi a quantia doada em 2014 por empresas alimentícias a membros do Congresso brasileiro, valor três vezes superior a 2010

1,6 milhão de pessoas são empregadas por conglomerados de alimentos e bebidas no Brasil

270% foi o aumento, de 1980 a 2015, do número de crianças brasileiras obesas

300 mil brasileiros por ano recebem o diagnóstico de diabetes tipo dois, condição fortemente vinculada à obesidade. O índice de obesidade no país quase dobrou, chegando a 20%, e a parcela de pessoas com sobrepeso quase triplicou, alcançando 58%.

http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2017/09/1920550-como-grandes-empresas-deixaram-o-brasil-viciado-em-junk-food.shtml

terça-feira, 25 de abril de 2017

Independência judicial e abuso de autoridade

Sérgio Moro escreve   
Lei precisa de salvaguardas expressas para prevenir a punição do juiz
As Cortes de Justiça precisam ser independentes. Necessário assegurar que os julgamentos estejam vinculados apenas às leis e às provas e que sejam insensíveis a interesses especiais ou à influência dos poderosos.

A independência dos juízes tem uma longa história. Na Idade Média, os juízes do rei se impuseram, inicialmente, às Cortes locais, estas mais suscetíveis às influências indevidas nos julgamentos. Sucessivamente, os juízes se tornaram independentes do próprio rei e, posteriormente, daqueles que o substituíram no exercício do poder central, o executivo ou o parlamento.
Nos Estados Unidos, a independência judicial foi definitivamente afirmada ainda no ano de 1805 com o fracasso da tentativa de impeachment do juiz Samuel Chase da Suprema Corte. O impeachment foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas foi rejeitado no Senado. Tratava-se de tentativa do então presidente Thomas Jefferson, notável por outras realizações, de obter domínio político sobre a Suprema Corte. O célebre John Marshall, então juiz presidente da Suprema Corte, afirmou, sobre o episódio, que o impeachment tinha por base o equivocado entendimento de que a adoção por um juiz de uma interpretação jurídica contrária à legislatura tornaria-o suscetível ao impeachment. A recusa do Senado, mesmo pressionado pela Presidência, em aprovar o impeachment propiciou as bases da tradição de forte independência das Cortes norte-americanas e que é uma das causas da vitalidade da democracia e da economia daquele país.
No Brasil, a independência das Cortes de Justiça é resultado de uma longa construção, trabalho não de um, mas de muitos.
Seria, porém, injustiça não reconhecer a importância singular de Rui Barbosa nessa construção.
Rui Barbosa é um dos pais fundadores da República. Foi o maior jurista e o mais importante advogado brasileiro. De negativo em sua história, apenas o seu envolvimento na política econômica do encilhamento, a confirmar o ditado de que bons juristas são péssimos economistas e vice-versa.
Rui Barbosa assumiu a defesa, no final do século XIX, do juiz Alcides de Mendonça Lima, do Rio Grande do Sul. O juiz, ao presidir julgamento pelo júri, recusou-se a aplicar lei estadual que eliminava o voto secreto dos jurados, colocando estes a mercê das pressões políticas locais.
O então presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, contrariado, solicitou que fosse apurada a responsabilidade do “juiz delinquente e faccioso”. O tribunal gaúcho culminou por condená-lo por crime de abuso de autoridade.
Rui Barbosa levou o caso até o Supremo Tribunal Federal, através da Revisão Criminal nº 215.
Produziu, então, um dos escritos mais célebres do Direito brasileiro, “O Jury e a responsabilidade penal dos juízes”, no qual defendeu a independência dos jurados e dos juízes. Argumentou que um juiz não poderia ser punido por adotar uma interpretação da lei segundo a sua livre consciência. Com a sua insuperável retórica, afirmou que a criminalização da interpretação do Direito, o assim chamado crime de hermenêutica, “fará da toga a mais humilde das profissões servis”. Argumentou que submeter o julgador à sanção criminal por conta de suas interpretações representaria a sua submissão “aos interesses dos poderosos” e substituiria “a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura”, pelo temor que “dissolve o homem em escravo”. Ressaltou que não fazia defesa unicamente do juiz processado, mas da própria independência da magistratura, “alma e nervo da Liberdade”.
O Supremo Tribunal Federal acolheu o recurso e reformou a condenação, isso ainda nos primórdios da República, no distante ano de 1897.
Desde então sepultada entre nós a criminalização da hermenêutica, passo fundamental na construção de um Judiciário independente.
Passado mais de um século, o Senado Federal debruça-se sobre projeto de lei que, a pretexto de regular o crime de abuso de autoridade, contém dispositivos que, se aprovados, terão o efeito prático de criminalizar a interpretação da lei e intimidar a atuação independente dos juízes.
Causa certa surpresa o momento da deliberação, quando da divulgação de diversos escândalos de corrupção envolvendo elevadas autoridades políticas e, portanto, oportunidade na qual nunca se fez mais necessária a independência da magistratura, para que esta, baseada apenas na lei e nas provas, possa determinar, de maneira independente e sem a pressão decorrente de interesses especiais, as responsabilidades dos envolvidos, separando os culpados dos inocentes.
Ninguém é favorável ao abuso de autoridade. Mas é necessário que a lei contenha salvaguardas expressas para prevenir a punição do juiz — e igualmente de outros agentes envolvidos na aplicação da lei, policiais e promotores — pelo simples fato de agir contrariamente aos interesses dos poderosos.
A redação atual do projeto, de autoria do senador Roberto Requião e que tem o apoio do senador Renan Calheiros, não contém salvaguardas suficientes. Afirma, por exemplo, que a interpretação não constituirá crime se for “razoável”, mas ignora que a condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências dos poderosos na definição do que vem a ser uma interpretação razoável. Direito, afinal, não admite certezas matemáticas.
Mas não é só. Admite, em seu art. 3º, que os agentes da lei possam ser processados por abuso de autoridade por ação exclusiva da suposta vítima, sem a necessidade de filtro pelo Ministério Público. Na prática, submete policiais, promotores e juízes à vingança privada proveniente de criminosos poderosos. Se aprovado, é possível que os agentes da lei gastem a maior parte de seu tempo defendendo-se de ações indevidas por parte de criminosos contrariados do que no exercício regular de suas funções.
Há outros problemas na lei, como a criminalização de certas diligências de investigação ou a criminalização da relação entre agentes públicos e advogados, o que envenenará o cotidiano das Cortes.
Espera-se que uma herança de séculos, a construção da independência das Cortes de Justiça, não seja desprezada por nossos representantes eleitos. Compreende-se a angústia do momento com a divulgação de tantos casos de corrupção. Mas deve-se confiar na atuação da Justiça, com todas as suas instâncias, para realizar a devida depuração. Qualquer condenação criminal depende de prova acima de qualquer dúvida razoável. A aprovação de lei que, sem salvaguardas, terá o efeito prático de criminalizar a hermenêutica e de intimidar juízes em nada melhorará a atuação da Justiça nessa tarefa. Apenas a tornará mais suscetível a interesses especiais e que, por serem momentâneos, são volúveis, já que — e este é um alerta importante — os poderosos de hoje não necessariamente serão os de amanhã.
Rui Barbosa também foi Senador da República. É o seu busto que domina o Plenário do Senado. Espera-se que a sua atuação como um dos fundadores da República e em prol da independência da magistratura inspire nossos representantes eleitos.
*Sergio Fernando Moro é juiz federal n'O Globo de 25/04/2017

http://oglobo.globo.com/brasil/artigo-independencia-judicial-abuso-de-autoridade-por-sergio-moro-21251404

quinta-feira, 20 de abril de 2017

É preciso abandonar modismos educativos

Por mais controvérsias que existam sobre métodos de ensino, um conjunto de ideias virou praticamente consenso entre educadores nas últimas décadas.

Algumas delas: o aluno deve gostar do que aprende; decorar informações é negativo; e desenvolver competências como pensamento crítico, mais do que ensinar o conteúdo curricular, é o verdadeiro papel da escola do século 21.

Para o matemático Nuno Crato, 65, são erros de uma "pedagogia romântica". Ministro da Educação de Portugal de 2011 a 2015, ele comandou uma comandou uma reforma no sistema educacional do país que recorreu a uma receita clássica.

Priorizou português e matemática, eliminou disciplinas não tradicionais, como estudo acompanhado e projetos, e aumentou o rigor na seleção de professores. Tudo isso em meio a uma crise econômica que reduziu salários do funcionalismo e a críticas de sindicatos e pedagogos.

Após sua saída do ministério, os resultados do Pisa, exame internacional de educação, fizeram o mundo voltar os olhos para Portugal.

Na prova de 2015, o país superou a média da OCDE, organização que reúne o mundo desenvolvido, ultrapassando Estados Unidos e Espanha, por exemplo. Junto a Dinamarca, Suécia e à minúscula Malta, foi a única nação europeia a melhorar em todas as áreas avaliadas.

Hoje, no ranking do exame, Portugal ocupa o 18º lugar em ciências, o 15º em leitura e o 21º em matemática -três anos antes, estava em 29º, 22º e 28º, respectivamente. As colocações do Brasil são 49ª, 45ª e 53ª.
*
Folha - O que explica o avanço dos alunos portugueses?
Nuno Crato - Fizemos coisas simples. Demos prioridade, com mais tempo de aula, às disciplinas fundamentais –primeiro português e matemática e, depois, história, geografia e ciências. Elas são as estruturantes, permitem ao aluno progredir nas outras. Se ele tiver dificuldade de leitura, vai ser muito difícil estudar história. Se tiver conhecimento muito fraco de história, será difícil estudar política, sociologia, história da arte etc. Portanto, no conhecimento dos alunos há um conjunto de prioridades.
E toda a gente sabe. Toda a gente sabe que português e matemática vêm em primeiro, que os alunos dos primeiros anos devem se concentrar em ler bem, escrever bem, falar bem e conhecer as regras fundamentais da matemática, para poder progredir nas ciências, literatura, artes, geografia etc. E muitas vezes isso, que parece o óbvio, que os estudos e a experiência mostram, não é feito. Demos mais tempo a essas duas áreas e depois a ciência, história e geografia.
Também criamos programas estruturados com metas que indicavam o que o aluno deveria dominar a cada ano de escolaridade. Isso ajudou professores, pais e autores de manuais escolares a ter um objetivo comum. A avaliação, junto com a divulgação dos resultados, foi fundamental. Investimos ainda no apoio aos alunos com mais dificuldades, com mais créditos (horários de professores) e assim melhoramos tanto os do topo como os de baixo da tabela.

Por que a ênfase em português e matemática?

A verdadeira pedagogia moderna, baseada nas ciências cognitivas do século 21, mostra que não basta saber ler. Os jovens devem ter fluência na leitura e nas operações matemáticas. Isso lhes permite depois libertar a mente para atividades de ordem cognitiva superior. Se o jovem estiver a soletrar enquanto lê, terá dificuldade de entender o conteúdo do texto.
A psicopedagogia do século 21 descobriu que há um conjunto de automatismos que ajuda a compreensão. A ideia é que as tarefas cognitivas de ordem superior –reflexão, crítica, criatividade– são baseadas em processos da ordem inferior. E o grande erro da pedagogia romântica é pensar que se pode chegar aos processos cognitivos superiores esquecendo-se dos inferiores.

Como foi enfrentar a resistência a essas medidas?

Os professores portugueses reagiram muito bem tanto a essas políticas como a outros dois fatos. Em 2011, Portugal teve que pedir ajuda externa. E, entre uma série de cortes, os salários de todos os funcionários públicos foram temporariamente reduzidos. Para diminuir o impacto, reduzimos o número de professores em funções de apoio [fora da sala de aula]. Em 2011, a escolaridade obrigatória era de nove anos. Desde 2012, é de 12 anos [no Brasil, desde o ano passado é de 14].

Um gargalo na educação brasileira é o ensino médio. E em Portugal?

Passava-se o mesmo. O aluno completava o básico e depois com muita dificuldade o secundário. Isso só pode ser ultrapassado com uma melhor preparação para o ensino médio. Não é simplificar, mas trabalhar mais. Uma receita simples. É importante também haver uma diversidade de caminhos.

O sr. é um crítico do chamado "eduquês". Quais são os maiores mitos da educação?

Há muitos. Um é que os alunos só devem aprender o que gostam. O problema é que eles só podem saber o que gostam depois de aprender. Portanto, além de motivar os alunos, é preciso ter uma pressão sobre eles para lhes transmitir conhecimentos e habilidades fundamentais.
Outro mito é que avaliação faz mal, cria estresse, e os jovens ficam traumatizados. Mas avaliação não é um obstáculo, é um incentivo. Todos precisamos. Tudo isso são mitos muito antigos.
O que se chama de pedagogia moderna no fundo são ideias muito velhas, de mais de um século, muitas sem fundamento. Exemplo é a noção de que a exigência prejudica os pobres. Não, ela é amiga deles, porque os mais favorecidos podem ir a escolas privadas, podem ter apoio especial. Os mais desfavorecidos, não. Ou a escola pública lhes dá o conhecimento e as capacidades de que precisam, ou terão mais dificuldade no futuro.

E as críticas aos métodos de ensino que fazem o aluno memorizar o conteúdo?

Outro mito é que memorizar faz mal. Pelo contrário. Memorizar ajuda a desenvolver o cérebro e preparar para atividades de ordem superior. Claro que não queremos alunos que saibam de cor as coisas e não saibam aplicá-las. Mas a memorização também é necessária, pois, se não se sabe nada, não se pode aplicar.
A ideia de que o aluno pode ser crítico sem saber também é outra totalmente falsa. Como se pode fazer formação crítica sem se dominar o conteúdo? Como o aluno pode ter formação crítica sobre economia de mercado se ele não souber o que é a economia de mercado?

Recentemente, Andreas Schleicher, o responsável pela educação na OCDE, disse que os alunos portugueses vão bem em tarefas que exigem uma reprodução do que é ensinado na escola, mas não são tão bons na aplicação criativa dos conteúdos. Nesse sentido, diz, as escolas do país "ainda não fizeram a transição do século 20 para o 21." Concorda?

Concordo, mas com reticências. Sim, é importante que os alunos consigam reproduzir os conteúdos ensinados na escola e ir além da sua aplicação mecânica. Mas, neste último Pisa, os portugueses melhoraram nos dois aspectos, nos conhecimentos e na aplicação. E não se pode cair no erro de querer uma aplicação criativa de conhecimentos se os conhecimentos não existirem.
Mais uma vez: as capacidades cognitivas de ordem superior, tais como a resolução criativa de problemas, desenvolvem-se com base nas capacidades cognitivas básicas, tais como o domínio da leitura e das operações matemáticas. Não se pode trocar a ordem das coisas e saltar etapas. É impossível aplicar criativamente conceitos se não se conhecem esses conceitos.

No Brasil, 20% dos alunos de pedagogia têm desempenho muito baixo na escola. Como melhorar a formação de professores?

Em Portugal, nós aumentamos a exigência para a profissão. Para entrar na universidade em cursos da área, exigimos uma nota mínima em português e matemática. Outra, que infelizmente foi retirada, é uma prova para entrar na carreira. [As duas medidas foram propostas também no Brasil, pelo então ministro Fernando Haddad, em 2009. A prova nacional não foi levada adiante, e a nota mínima virou lei em 2013, mas nunca foi regulamentada].
Além disso, as universidades também aumentaram a carga horária para o conhecimento das matérias que serão lecionadas. Havia uma tendência grande de ensinar muito sociologia, filosofia, e pouco sobre as matérias que serão ensinadas.

Algumas escolas brasileiras vêm adotando um ensino por projetos que reúnem várias disciplinas. O que acha?

Projetos podem e devem ser feitos. Podem e devem ser multidisciplinares. Mas isso é muito negativo se destrói as disciplinas, porque elas têm uma estrutura que os jovens precisam conhecer, e não só por meio de projetos dispersos.
A história, por exemplo, tem uma ideia de continuidade que deve ser apresentada de maneira sistemática. Se o jovem faz uma vez um projeto sobre a Grécia Antiga, outro sobre os índios brasileiros, nunca terá um conhecimento conjunto da história. Projetos são auxiliares do ensino, não podem ser sobrevalorizados.

Por que os países asiáticos, como Cingapura, dominam hoje os rankings educacionais?

Porque fazem o básico. Dão mais importância à matemática e à língua pátria, têm as disciplinas bem organizadas e professores exigentes, que trabalham na sala de aula e dão pouca atenção à fantasia. E há alguns países ocidentais que tiveram bastante sucesso e agora estão a andar para trás porque começaram a esquecer as coisas básicas e sucumbir a modas educativas.

Por exemplo?

Começaram a pensar que tudo podia ser organizado por projetos, e não pode. A Finlândia baixou os resultados. Certamente contribuiu o fato de os finlandeses terem mudado um pouco a orientação do sistema educativo e sucumbido a modas educativas. O Canadá também é um caso claro de país que adotou exageradamente essas modas e regrediu [os dois países estão entre os melhores fora da Ásia, mas pioraram na última década].

Há uma ideia corrente de que se investir muito no conteúdo não vai formar um cidadão.

É um erro completo. Não tem sentido formar cidadãos ignorantes. Quanto mais conhecedor ele for, mais crítico, ativo, criativo e solidário será. Claro que estamos no século 21 e, portanto, temos uma sociedade em que os jovens emigram, aprendem línguas estrangeiras, gostam de viajar, de mudar de emprego. É um mundo diferente. Mas não significa que o conteúdo deixa de ser importante.

Reportagem de Angela Pinho na Folha de São Paulo de 20/04/2017

http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/04/1875676-e-preciso-abandonar-modismos-educativos-diz-ex-ministro-portugues.shtml

segunda-feira, 27 de março de 2017

Previdências de 22 Estados e do DF operam com déficit

Em apenas seis anos, o rombo das previdências estaduais passou de R$ 49 bilhões para R$ 77 bilhões, e três Estados já gastam mais de 20% das suas receitas apenas para pagar aposentados e pensionistas; para analistas, situação é insustentável

Na semana em que o presidente Michel Temer anunciou que os servidores dos Estados e municípios ficariam de fora da reforma da Previdência, um estudo mostra o tamanho do problema deixado para os governadores. Atualmente, as previdências do Distrito Federal e de 22 dos 26 Estados operam no vermelho.

Em apenas seis anos – entre 2009 e 2015, último dado disponível –, o rombo passou de R$ 49 bilhões para R$ 77 bilhões, em valores atualizados pela inflação. Para pagar os aposentados, os Estados usam o dinheiro do seu caixa. A parcela da receita comprometida com a Previdência, na média, subiu de 9,5% para 13,2%. Santa Catarina, Minas Gerais e Rio Grande do Sul já gastam mais de 20% da receita com Previdência (ver quadro).

Os números que mostram a nova dinâmica de gastos, Estado por Estado, constam de uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Três fatores levaram à deterioração acelerada, explica um dos autores do trabalho, Claudio Hamilton Matos dos Santos, técnico de Planejamento e Pesquisa da área macroeconômica do Ipea.

O primeiro deles até contraria outros levantamentos: o número de funcionários na ativa está caindo – o que leva à redução das pessoas que contribuem com a Previdência. Na média, a retração foi de 3,6% em sete anos. Mas, em alguns Estados, foi bem maior porque os governadores tentam cortar despesas reduzindo a máquina pública. No Rio Grande do Sul, houve corte de 18% no pessoal. Em São Paulo, de 12%.

Por outro lado, ocorre uma aceleração nos pedidos de aposentadorias. O número de inativos cresceu 25% entre 2009 e 2015. Há Estados em que o ritmo foi frenético. No Acre e Tocantins, o número de aposentados praticamente dobrou.

O terceiro fator foi pontual, mas nefasto: houve reajustes generalizados nos salários dos servidores, que foram repassados, em sua maioria, integralmente para os aposentados. Não há espaço para mais reajustes, mas o número de aposentados vai continuar a crescer e o de servidores, a cair. “Esse descompasso não vai apenas aumentar o déficit, mas também prejudicar a qualidade dos serviços públicos dos Estados”, diz Claudio Hamilton, do Ipea

Realidade. “O que o Ipea constatou é a mais pura realidade: sem uma reforma, em cinco ou dez anos todos os Estados estarão como o Rio de Janeiro”, diz o secretário da Fazenda de Alagoas, George Santoro. Sua gestão fez um PDV, plano de demissão voluntária, seguiu o exemplo da União e apertou as regras para concessão de pensões, e agora estuda a criação de um fundo para amparar a Previdência. Mas ele alerta: “Uma hora seremos obrigados a contratar, porque não tem como fazer segurança sem policial na rua ou dar aula sem professor; a qualidade do serviço público está caindo no País todo”, diz.

Na tentativa de aliviar a crescente pressão sobre as contas, nos próximos dias os Estados voltarão a procurar o governo para pedir o compartilhamento das contribuições (tipo de tributo que é de exclusividade da União). “Não vamos conseguir oferecer todos os serviços se a receita não aumentar”, diz André Horta, presidente do Consórcio Nacional de Secretarias da Fazenda (Consefaz)
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Reportagem de Alexa Salomão n'O Estado de São Paulo de 27/03/2017
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,previdencias-de-22-estados-e-do-df-operam-com-deficit,70001715143

domingo, 18 de setembro de 2016

Juiz afirma que servidor público não é ladrão

Sob o título “Servidores Públicos não são ladrões“, o juiz Eduardo Perez Oliveira, do Tribunal de Justiça de Goiás, publicou o seguinte texto em sua página no Facebook:
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Para meu espanto, hoje me deparei com uma frase supostamente dita pelo Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, a saber:
O político, por mais ladrão que seja, todo ano tem que enfrentar o povo, sair na rua e pedir voto. O funcionário público não. Ele faz concurso e fica lá, com o cargo garantido, tranquilo”
Eu fiquei em dúvida se era verdade, já que tem tanta mentira por aí sendo espalhada. Chegaram a inventar, vejam só, que os procuradores tinham dito não possuir provas contra o Sr. Luiz Inácio, somente convicção, o que é uma tremenda inverdade. Não se pode mesmo acreditar em tudo na internet.
Verdade ou mentira, fiquei aqui pensando se essa frase faz sentido.
Eu estou Juiz de Direito, aprovado em concurso público, também em outros cargos antes de lograr esta graça. Como a memória da gente é falha, eu me esforcei para lembrar como foi o processo.
Conferi, cuidadosamente, se eu não tinha sido financiado por alguma empreiteira. Também verifiquei se eu não tinha obtido meu cargo desviando dinheiro de alguma empresa pública, fazendo aí um caixa 2 para me apoiar. Pode ser a idade, mas não me veio à memória disso ter acontecido.
O que me recordo é do esforço dos meus avós, dos meus pais e dos meus familiares, mas muito esforço mesmo, para garantir educação, sem luxos. Também não me é familiar ter participado de esquemas ou ajustes partidários. Não dava tempo, saindo de casa para trabalhar às sete da manhã e voltando às nove, dez horas da noite, só com o horário do almoço para abrir os livros e enfrentar o escárnio.
Eu lembro de ter estudado muito, da frustração em razão do pouco tempo, das dúvidas se algum dia eu chegaria lá. Eu me recordo bem do dia da minha prova oral, num estado onde não conhecia ninguém, tremendo diante dos examinadores de uma banca absolutamente imparcial presidida pelo Desembargador Leandro Crispim.
Quem sabe estaria mais calmo se eu tivesse feito coligação, se uma mão lavasse a outra, se algum ajuste, talvez aquele esquema… Mas não daria certo. Veja você que eu estava prestando um concurso público e até a fase oral eu não tinha rosto, e a banca (que injustiça!) também era formada quase que absolutamente por gente concursada, magistrados aprovados em um concurso semelhante.
Não iria adiantar caixa 2, apoio parlamentar, conversa de bastidor. Eu estava ali para ser examinado imparcialmente pelos meus conhecimentos. Era só Deus e eu.
Vai ver, pensei, que meu caso é um daqueles fora da curva, uma das tais histórias malucas. Quem sabe a regra não fosse a interferência política e econômica nos concursos?
Conversei com vários colegas juízes e, fato estranho, todos confirmaram que não fizeram caixa dois, nem coligação, nem tiveram conversas de bastidores. Estudaram, com muito esforço, alguns com privação, e foram aprovados em um concurso impessoal e imparcial.
Para não dizer que é coisa de juiz, essa tal elite, falei com meus amigos procuradores, promotores, escreventes, oficiais de justiça, policiais civis e militares, delegados, professores, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e tantos outros aprovados em concurso público de provas e títulos.
Todos deram a mesma resposta: lograram êxito após muito estudo, de forma limpa e transparente.
“Mas nenhuma empreiterazinha?”, insisti. “Quem sabe alguma verba de empresa pública?”. Não. Foi estudo mesmo.
O mais curioso é que todos tiveram que apresentar certidão de antecedentes criminais, logo, nenhum podia ser ladrão. Nem ladrão, nem outra coisa. Algumas carreiras fazem sindicância de vida pregressa. Ai do candidato que não possui um passado ético, com certeza não entraria pela estreita porta do concurso público.
Aproveitei e, ainda meditando sobre a frase, me peguei pensando se todo ano, ou melhor, a cada quatro anos (alguns, oito), eu precisava enfrentar o povo.
Realmente, se o Sr. Luiz Inácio disse isso, ele está certo. Eu não enfrento o povo anualmente. Aliás, eu não enfrento o povo. Não tenho medo da minha gente, nem litígio com ela. Eu sou povo também. Pode parecer surpresa, mas concursado faz parte da nação.
Eu não enfrento, eu atendo. Eu recebo preso. Eu recebo mãe de preso, pai, vó, filhos, esposa de preso. Recebo conselheiro tutelar. Recebo advogado. Recebo as partes também. Ouço a vítima do crime, ou, em situações mais tristes, os que sobreviveram a ela. Eu vejo o agrícola que vai pedir para aposentar. Vejo o cidadão que não tem medicamento, a mãe que busca escola pro filho, o neto que busca uma vaga de UTI pro avô.
Eu cansei de ver o piso do fórum gasto de passar tanto calçado, de chinelo usado a sapato caro, de gente que vê no Judiciário seu único porto seguro. Gente que não conseguiu vaga em escola, em creche. Que não conseguiu remédio. Que se acidentou na estrada esburacada. Que trabalhou nesse calor inclemente do Centro-Oeste por quarenta anos ou mais, com a pele curtida de sol, e quando foi pedir aposentadoria disseram a ele que não tinha prova. Não sou quiromante, mas eu aprendi a ler a mão e o rosto desse povo. Aprendi a falar a língua deles, não porque eles vão votar em mim, mas porque é minha obrigação para aplicar a lei.
Essa mesma gente que os políticos enfrentam (enfrentam, vejam vocês!), segundo a tal frase, eu atendo todo dia. É meu dever, e com que prazer eu realizo esse dever!
Eu atendo essa gente que vem acreditando há décadas nesses políticos que, como um fenômeno natural, aparecem apenas de forma episódica e em determinadas épocas. Um povo que acreditou que teria saúde, educação, segurança, lazer, trabalho, aposentadoria, dignidade e tantos direitos básicos só por ser gente, mas não tem.
Esse mesmo povo que vota, que deposita na urna sua esperança, a recolhe depois despedaçada, cola o que dá e procura o promotor ou o defensor público, servidores concursados, quando não um nobre advogado dativo ou pro bono, para pedir ao juiz esse direito sonegado. São os concursados que garantem esse direito.
São os juízes que aplicam a lei criada pelos políticos eleitos para o Legislativo, e nessas horas em que a lei é dura e talvez não tão justa, quando devemos fazer valer o seu império, só nos resta ouvir e consolar.
Juízes, é preciso dizer, não são máquinas, porque nessas engrenagens desprovidas de coração que formam o sistema, é a nossa alma que colocamos entre os dentes do engenho para aplacar seu cruel atrito.
E quando estamos sozinhos, nós sofremos, nós choramos, porque lidamos também com a desgraça do povo, do nosso povo, do povo do qual fazemos parte e que não enfrentamos, mas atendemos.
Perguntei aos meus amigos promotores, defensores, escreventes, analistas, oficiais de justiça, professores, policiais, guardas civis metropolitanos, agentes carcerários, bombeiros, militares, médicos, agentes de saúde, enfermeiros e tantos outros, se eles por acaso enfrentavam o povo, mas me disseram que esse povo eles faziam era atender.
É também a alma deles que lubrifica essa máquina atroz que é o sistema.
É à custa da alma do concursado que o Estado se humaniza. Que o digam nossas famílias, nossos amigos… que digamos nós, quando abrimos mão de tanta coisa para cumprir nossa missão, quando para socorrer um estranho muitas vezes alguém próximo a nós precisa esperar.
Forçoso que se concorde, nós não enfrentamos o povo a cada dois, quatro anos. Nós o atendemos dia e noite, nós olhamos seu rosto, tentamos aplacar sua angústia em um país em que tudo falta, quando um médico e sua equipe não tem nem gaze no hospital público.
E fazemos isso porque amamos nossa profissão, seja ela qual for, não porque precisamos de votos. Nós chegamos onde chegamos com dedicação, não com esquemas, e sem lesar o patrimônio público ou a fé da nação.
São servidores públicos concursados que estão descobrindo as fraudes que corroem nosso Brasil, do menor município à capital do país, e serão servidores públicos concursados a julgar tais abusos. São servidores públicos concursados que patrulham nossas ruas, que atendem em nossos hospitais, que ensinam nossas crianças.
Nós não precisamos prometer nada para o povo, nós agimos.
Realmente, é preciso temer pessoas que possuem um compromisso com a ética, não com valores espúrios.

A carta do juiz foi publicada por Frederico Vasconcelos na Folha de São Paulo de 18/09/2016
http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2016/09/16/juiz-afirma-que-servidor-publico-nao-e-ladrao/

segunda-feira, 30 de maio de 2016

STJ vai analisar fraudes no Minha Casa Minha Vida

O inferno astral do governo Dilma parece não ter fim.
Se, por um lado, a gestão Temer está escancarando gastos e prejuízos ao erário devido aparelhamento do estado na era petista, o judiciário também começa a se debruçar sobre falcatruas nos programas preferidos do PT.
Na próxima quinta-feira o STJ vai analisar um esquema de fraudes no Minha Casa Minha Vida.
A empresa RCA Assessoria é suspeita de desviar recursos do programa justamente nos locais onde ele é mais necessário, nos municípios com menos de 50 mil habitantes.
O processo pode fornecer novos caminhos para o Ministério Público Federal apurar desvios no programa e possíveis favorecimentos a pessoas ligadas ao antigo governo.
De: Vera Magalhães no blog Radar On-line em 30/05/2016
http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/governo/stj-vai-analisar-fraudes-no-minha-casa-minha-vida/


Ex-servidores do Ministério das Cidades fraudaram o Minha Casa
Um esquema de empresas de fachada, parte delas registrada no mesmo endereço e controlada por um grupo de ex-funcionários do Ministério das Cidades, abocanha cada vez mais contratos para construção de casas populares destinadas às faixas mais pobres da população. No centro da história está a RCA Assessoria em Controle de Obras e Serviços, empresa com sede em São Paulo e três sócios: Daniel Vital Nolasco, ex-diretor de Produção Habitacional do Ministério das Cidades até 2008 e filiado ao PCdoB; o ex-garçom do ministério José Iran Alves dos Santos; e Carlos Roberto de Luna. A RCA funciona numa sede modesta, mas apresenta números invejáveis para quem está no setor há tão pouco tempo. Alardeia atuar em 24 estados e mil municípios, e garante que entregou 80 mil casas. Hoje, estaria à frente da construção de 24 mil unidades. O faturamento milionário da RCA virou alvo de disputa judicial, que expõe supostas conexões da empresa com o PCdoB. Até a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra tem o nome citado.
A RCA dá consultoria a prefeituras e beneficiários, e atua como correspondente bancário de sete pequenas instituições financeiras autorizadas a repassar verbas federais nos programas de casas populares para cidades com menos de 50 mil habitantes. Atuou no Programa Social de Habitação (PSH) e agora opera no seu sucessor, o Minha Casa. Até aí, tudo dentro da normalidade. Mas a RCA faz mais: consegue ao mesmo tempo ser representante do agente financeiro, tocar construções e também medi-las e fiscalizá-las. Para isso, usa uma rede de empresas que os sócios e os funcionários registraram em seus nomes e cujos endereços ou são na sede da RCA, em São Paulo, ou na casa de parentes.
O site da empresa dava o exemplo de como a RCA frauda o processo de seleção de construtoras que vão executar obras financiadas com recursos federais e encomendadas por prefeituras. Para contratar uma construtora responsável pela execução de obras no Espírito Santo, lançou um edital de convocação em dezembro de 2012. O site convocou os interessados e dias depois divulgou os vencedores. Duas foram selecionadas. Uma delas é a JB Lar. Tudo como manda o figurino. Não fosse um detalhe: o endereço da JB Lar é o mesmo da RCA, a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio 4.553. A JB Lar foi habilitada para construção de 95 casas no Espírito Santo. Na sexta-feira, após ser procurada pelo GLOBO, a RCA tirou do ar o link “Editais” do seu site.
Disputa pelo faturamento da empresa
O esquema de empresas de fachada está narrado numa ação na Justiça de São Paulo. Nela, Fernando Lopes Borges — outro ex-servidor do Ministério das Cidades, que seguiu na Secretaria Nacional de Programas Urbanos até ser exonerado por abandono do cargo em 2010 — apresenta-se como sócio oculto da RCA. Ele era representado no negócio pelo irmão Ivo, já falecido. E a disputa pelo faturamento da empresa começou justamente após a morte de Ivo.
Num acordo prejudicial, Fernando chegou a receber pouco mais de R$ 1 milhão da RCA. Mas quer mais e briga na Justiça. Na ação, afirma, sem apresentar provas, que o desvio de recursos do Minha Casa Minha Vida teria começado com Erenice Guerra. Ela teria articulado a entrada de bancos privados na operação do programa em pequenos municípios. Segundo o denunciante, teria direito a R$ 200 por casa construída. Fernando sustenta na ação que o negócio chegaria a render R$ 12 milhões.
Ele diz que o PCdoB desde 2005 receberia dinheiro desviado para a construção de casas populares do Programa de Subsídio Habitacional (PSH), que foi absorvido pelo Minha Casa Minha Vida. Procurado, Fernando sustentou que a RCA está envolvida em irregularidades nos programas federais do Ministério da Cidades, mas não quis confirmar as denúncias contra Erenice e o PCdoB. No processo, Fernando mostra uma troca de e-mails entre Carlos Luna, da RCA, e o escritório Trajano & Silva, que foi fundado por Erenice. Eles tratam da retirada do sócio Ivo e do valor que deveria ser pago a Fernando.
O esquema incluiria a construtora Souza e Lima Engenharia, que pertence ao ex-engenheiro e ao ex-gerente-geral da própria RCA. Essa empresa fez casas no Maranhão para o Minha Casa Minha Vida em contratos geridos pela RCA. Outra empresa de pessoas próximas prestou o mesmo serviço. A Martins MA Engenharia — que hoje pertence ao cunhado de Daniel Vital Nolasco — também construiu casa para a RCA.
Na ação, Fernando reclama a sociedade nas empresas de assessoria cadastral Artifício, Setorial, Sigma e Marketplan. Todas seriam do grupo RCA. As três primeiras têm Nolasco como sócio. José Iran é um dos donos da última. O grupo tem participação em outras empresas. Carlos Luna e José Iran são donos da Superdata. Luna é um dos sócios da LL Engenharia. Fernando relata no processo que há contratos com a DJC/Naza Engenharia, que seria responsável pela construção de oito mil casas. Essa empresa seria de Divaildo, irmão de Celma Casado Silva. Ela foi exonerada em fevereiro deste ano da Secretaria de Habitação do Ministério das Cidades. Segundo o órgão, ela foi exonerada a pedido.
Reportagem de Gabriela Valente d'O Globo em 13/04/2013 
http://oglobo.globo.com/brasil/ex-servidores-do-ministerio-das-cidades-fraudaram-minha-casa-8107417

terça-feira, 29 de março de 2016

De formigueiros e nações

Até há pouco tempo, acreditavam pesquisadores e leigos que formigueiros eram administrados por suas rainhas. Existem 140 mil espécies diferentes de formigas, todavia com uma particularidade comum, o movimento de zigue-zague com que forrageiam e voltam com suas presas para o ninho.
Hoje sabe-se que as rainhas não são mais que fábricas de larvas. As informações necessárias para encontrar a direção do formigueiro ou da forragem são trocadas pelas formigas operárias, que se tocam com suas antenas capazes de distinguir "cheiros" distintos de quem vai para o campo e de quem vem para o formigueiro.
Daí o caminho incerto e a baixa eficiência do caminhar da formiga, pois o espaço real percorrido por ela é muito maior, mais de cem vezes, que a distância entre a forragem e o ninho.
Economistas brasileiros atribuem o recente melhor desempenho do sistema produtivo de China e Cingapura, por exemplo, em relação ao Brasil à pior educação que teria o trabalhador brasileiro. Diferença esta que tem certamente importância.
Acredito, entretanto, que a diferença fundamental é o caráter estruturante que os governos autoritários da Ásia puderam emprestar a estruturas produtivas de seus países. Veja-se o caso dos momentos de governos fascistas da Alemanha de Hitler, da Itália de Mussolini, do Chile de Pinochet, com inegável desenvolvimento econômico.
Outro possível motivo para desenvolvimento acelerado é a existência de um inimigo externo. Talvez por isso os EUA se mantenham sempre em guerra.
A Alemanha do pós-guerra é um sucesso não apenas por possuir alguns grandes complexos industriais, mas antes pela notável coerência de atuação de suas pequenas e médias empresas familiares, coerência esta obtida principalmente por uma virtual parceria entre governo, proprietários e sindicatos.
A baixa produtividade de formigueiros e nações está claramente associada à ausência de fatores estruturantes de seus sistemas produtivos. Talvez seja por isso que interessa tanto aos países industrializados impor o "laissez-faire" aos países emergentes, com o que esperam reduzir-lhes a competitividade.
Pois bem, então quais as opções para o Brasil? Será que uma guerrinha com a Argentina ajudaria? E que tal chamarmos de novo os milicos? Em ambos os casos, seria arranjar sarna para se coçar.
Desde Juscelino Kubitschek, o Brasil tem tentado criar grandes "blocos de capital", mas as escolhas têm sido malfeitas. Empreiteiras atuam com tecnologias que se caracterizam por tempos de obsolescência longuíssimos. Como consequência, valem-se de lobbys, para dizer o menos, ao competir e têm como único cliente, ou quase, o governo.
O BNDES tem-se esforçado, mas sozinho, para reverter esse quadro. Sem o apoio de ministérios de Indústria e Planejamento competentes, o Brasil não estruturará jamais seu setor produtivo. Façamos como o Japão, criemos um Miti (Ministério da Indústria e Comércio Exterior). Um ministério que seja de verdade, impositivo, e não uma rainha de formigueiro.

Texto de 
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 84, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha

http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/03/1754110-de-formigueiros-e-nacoes.shtml

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O DESAFIO DA MATERNIDADE

"Amo meu filho, mas odeio ser mãe."
Após corrente na internet, mulheres ajudam a expor lado B da maternidade
"Amo meu filho, mas odeio ser mãe." Foi assim que a carioca Juliana Reis, 25, rejeitou o "Desafio da Maternidade", uma corrente lançada nas redes sociais que "desafiava" mães a publicarem fotos que mostrassem como é feliz a mulher que tem filhos.
Em vez disso, postou fotos amamentando, com ar exausto, seu filho, Vicente, hoje com dois meses.  
                                              


Falou das dificuldades do início da vida materna -dor nos seios, cansaço- e lançou outro desafio: "Postem fotos de desconforto com a maternidade e relatem seus maiores medos ou suas piores experiências para que mais mulheres saibam da realidade que passamos", propôs.

O post teve 114 mil curtidas e recebeu críticas, mas também mensagens de apoio e desabafo. Em seguida, o perfil dela no Facebook foi denunciado e bloqueado -e reativado 12 horas depois.
O bloqueio fez sua história ganhar visibilidade, e outras mães se manifestaram na esteira do desafio real.
O espectro de realidades expostas foi de reclamações sobre falta de tempo a relatos de depressão pós-parto, passando pela chamada "baby blues" -tristeza que dura de quatro dias a duas semanas e que afeta cerca de 50% das mulheres.
A catarinense Natália Pinheiro, 25, foi uma das que se manifestaram a favor de Juliana. Feminista, diz achar importante questionar a romantização do instinto materno pois, para ela, ele coloca excessiva responsabilidade pela criação sobre a mãe.
"Se acho que sou feita para aquilo, sinto que a responsabilidade é mais minha."

TRÉPLICA
A campanha em prol da "maternidade real" gerou, por sua vez, reações contrárias. Algumas mães disseram que o sofrimento faz parte e que, quem não o aguenta, não deveria ter filhos. Outras afirmaram que o desafio original era apenas uma brincadeira que havia sido levada a sério demais.
Foi o caso de Mayara Dias, 25. "Eu aceitei o desafio e faria de novo. Gosto de ser mãe. Já passei por essa fase difícil do início da vida do bebê. Temos que falar dela também, mas sei que passa. Os prazeres que vêm depois compensam", afirma ela, que é mãe de dois.
Joel Rennó Jr., diretor do programa de saúde mental da mulher do Instituto de Psiquiatria da USP, diz que a tristeza e a depressão após o parto têm causas diversas, de
genética a sociais.
Segundo ele, algumas mulheres são mais sensíveis à queda hormonal que acontece depois do parto.
"Colocar um padrão único para esse período acaba gerando mais prejuízo do que benefício. Você cria a ditadura da felicidade. Gera a possibilidade de preconceito contra mães que não se sentem alegres, inicialmente, no período do pós-parto."
Rennó Jr. diz que a excessiva romantização da maternidade pode contribuir para a subnotificação de casos de transtornos psicológicos no período pós-parto.
"Mulheres de todos os níveis socioeconômicos procuram tratamento tarde porque não são aceitas pela sociedade ou pela família. Sofrem caladas, têm medo de serem crucificadas. Há pessoas que poderiam ter tido outro destino se tivessem sido encorajadas a procurar ajuda."
Ele pondera, no entanto, que não se pode exagerar o sofrimento. "O importante é não dramatizar nem ignorar. Não se pode colocar a questão como se todas as mães que passam por dificuldades fossem ter quadros de depressão."
Da Folha de São Paulo de 29/02/2016
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/02/1744480-apos-corrente-na-internet-mulheres-ajudam-a-expor-lado-b-da-maternidade.shtml

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Fundo do poço à vista

O poço tem fundo?
O Vinicius Torre Freire da Folha de São Paulo faz um resumo das projeções dos bancos sobre o Fundo do poço à vista
Os otimistas acreditam que o poço tem fundo 
Nós, os realistas, acreditamos que o poço não tem fundo
Só iremos cravar as unhas na parede do poço e tentar subir depois que o GOVERNO do país for substituído!
Em breve, vamos chegar ao fundo do poço. Lá embaixo, porém, é frio, úmido e há bichos peçonhentos. Enfim, vamos chegar lá, mas arrebentados do tombo.
Sim, entre alguns economistas relevantes começou a se dizer que o fim está próximo. Ou melhor, a economia pararia de encolher em meados do ano. É o que diz, por exemplo, o pessoal dos departamentos de pesquisa econômica do Bradesco, do Itaú e do Safra.
Isso quer dizer que vamos sair do buraco? Não. A opinião mediana dos economistas "do mercado" é que começaríamos a escalar as paredes do poço apenas em 2018.
"Fundo do poço" quer dizer que o desemprego vai parar de crescer? Não vai. O contrário.
"Fundo do poço" quer dizer que o PIB (a produção ou a renda da economia) para de encolher. No entanto, ao final deste ano, o PIB por cabeça deverá ser menor do que em meados de 2010. Uma economia menor em geral emprega menos gente, a não ser que ocorra alguma aberração feliz. É improvável.
Sair do buraco significa que o PIB per capita teria ultrapassado o nível de 2013, ano a partir do qual o país começou a decair, a empobrecer. Essa ultrapassagem deve ocorrer lá por 2021, segundo projeções hoje tidas como otimistas. É projeção, não é destino. Mas a tarefa é difícil.
Na sexta-feira, os economistas do Safra publicaram um relatório em que apresentam um método engenhoso de medir a aproximação do fundo do poço. De acordo com essas contas, o ritmo de piora do PIB, mês a mês, está para chegar a zero. O ano ainda seria negativo.
Mesmo assim, o Safra estima que a taxa de desemprego média do ano passaria dos 6,8% de 2015 para 9,7% neste 2016 e para 12,3% em 2017 (desemprego nas seis metrópoles mais importantes). Não difere muito da projeção do Itaú.
Quando se mede o desemprego nacional, apurado pela Pnad, do IBGE, a taxa passaria da média de 8,3% em 2015 para 11,5% neste ano e para 13,2% em 2017, na estimativa do Itaú. Para o pessoal do Bradesco, para 11,8% neste ano e, mais otimistas, 11,7% em 2017.
Ou seja, trata-se de um maldito fundo do poço. "Estamos em um nível extremamente deteriorado de atividade. Porém, não parece razoável supor quedas adicionais significativas. Em outras palavras, o exercício sugere que estamos próximos do 'fundo do poço'", diz em seu estudo o pessoal do Safra, chefiado pelo economista Carlos Kawall.
Os números oficiais de 2015 ainda não saíram, mas o PIB deve ter diminuído quase 4% em 2015. Neste 2016, o tamanho da economia ficaria menor ainda 3,2%, na mediana das estimativas da centena de economistas que informam suas projeções ao Banco Central, semanalmente. Para os economistas do Itaú, a economia ainda diminui 4% neste ano. Para os do Bradesco, 3,5%. Do Safra, 2,9%.
"É importante notar que, primeiro, atingir o fundo do poço não significa necessariamente que um cenário de recuperação seja iminente... Em segundo lugar, vale relembrar que este cenário é condicionado à ausência de surpresas negativas. Novos desenrolares no âmbito político, assim como novas decepções no campo fiscal e, em menor medida, surpresas advindas do cenário internacional podem voltar a impactar a confiança dos agentes", diz em suma o relatório do Safra.

Da Folha de São Paulo de 14/02/2016
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2016/02/1739382-fundo-do-poco-a-vista.shtml