Na blitz sobre a cracolândia paulistana, deflagrada pelo governo estadual e pela Prefeitura de São Paulo na semana passada, transeuntes que assistiram à operação e até agentes de saúde se surpreenderam com a resistência dos dependentes a se deixar transferir para albergues, a receber ajuda e a ter uma oportunidade de se libertar do crack.
A cobertura de "O Estado de S.Paulo" reproduziu o diálogo entre um garoto de 12 anos e um agente. Ao ouvir a promessa de que, no albergue, ele não teria crack, mas poderia comer pizza à vontade, o menino reagiu a caráter: "Não gosto de pizza. Gosto de crack".
O que surpreende nesse diálogo é a inocência do profissional da saúde, ao acreditar que uma reles pizza poderia curar uma das mais severas dependências químicas já surgidas. Ou que o guri fuma crack por não ter dinheiro para a pizza. Ou que sua preferência pela droga seria produto de sua vontade ou, quem sabe, de sua "má natureza".
Duas ou três cachimbadas de crack são suficientes para estabelecer a dependência. A partir daí, a sensação, que se poderia classificar de prazerosa naquelas primeiras instâncias, muda de figura. Não será mais pelo prazer que o usuário terá de continuar com a droga, e sim para não passar mal -para não experimentar os terríveis efeitos da abstinência. Com qualquer droga é assim, mas com o crack é pior, porque o efeito apaziguador de uma pedra passa em instantes depois de fumada, obrigando o dependente a comprar outra pedra (por R$ 5 ou R$ 10) e fumar de novo.
Os dependentes não querem ir para o albergue porque sabem que lá não há crack e, para eles, ficou impossível viver sem crack. Na verdade, o impossível é viver com crack -mas seus sobreviventes só descobrirão isso depois de purgar todos os demônios da abstinência numa dura internação.
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Texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo de 29/07/09